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Ventania

Na margem certa da vida, a esquerda.

Ventania

Na margem certa da vida, a esquerda.

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Era mais um primeiro dia, adiado há meses por todos os travões que compõem as fugas. Era, como sempre, o Rossio que ampara encontros e desencontros. Era mais uma ginja, daquelas que deviam dar desculpa à língua para se soltar.

Era a cabeça às voltas com as inevitabilidades de fins e começos de motins internos, de desarranjos emocionais. Era a chuva nos óculos dele e um regicídio por celebrar. Foram palavras hesitantes e atrapalhadas, banalidades, sorrisos e silêncios dentro do olhar que diziam muito mais. Havia ali uma estória por ser escrita, a termo incerto.

Novamente, o Rossio. Novamente uma ginja desencontrada e um ano mais sobre o regicídio que abriu portas à República. Novamente, silêncios entre a chuva e decisões idiotas a serem tomadas com parcas palavras, que dos silêncios distantes de uns se fazem as aproximações de outros. Feridas abertas precisam de pensos rápidos quando a negligência já não chega para estancar.

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O que fazemos é o que somos. Não é o que dizemos, o que escrevemos ou sequer o que achamos que sentimos. É o que fazemos. É o que vamos fazendo todos os dias, não apenas o que ensaiamos em grandes gestos públicos. É o trato que damos aos outros, aos transeuntes, aos que trabalham para e connosco, e aos que trazemos no peito. É o que decidimos. É em quê colaboramos, o que escolhemos, o que construímos e destruímos. É cada abraço e cada silêncio e cada grito é cada lágrima e cada sorriso. Não somos intenções, sonhos e retórica. Somos concretos e objectivos, com razões e com consequências em todas as acções. Somos só o que fazemos. 
És o que queres ser?

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A palidez das emoções é-me insuportável, as palavras suaves e delicadas, névoas vazias de fogo, de pujança e de vida. Rendas debruadas a ouro, com minúcia na forma e vazias de conteúdo, não me servem, repelem-me o toque. São desperdício, diluem-se nos tempos rotos e nas costas voltadas, na erosão das lonjuras. São ofensivas as delicadezas que pairam sem se atravessar, por gentileza, a mendigar raspas do ar que é necessário para viver.
Não sei ser dos murmúrios a meia luz, das meias verdades e das paixões mornas, em lume brando, hesitantes. Sou inteira de tudo ou de coisa nenhuma; dos dilúvios no deserto que ofusca, árido, ou do granizo no verão alagado. Não sei ser sem sal que me tempere, sem gritos que me calem, sem orgasmos que me abandonem à deriva em mim. Sem apertar demais os tais nós que se eternizam ou quebram, ou sem soltar os laços já lassos, para que fique só quem queira estar, de corpo presente, invasão possante e pertinente. Não quero ser um quarto, um terço ou metade. Sou todos os avos minha e partilho-me toda em sobressalto, em enxurrada, avalanche de verdade; não dou migalhas, restos ou aperitivos, ou o banquete é farto de lamber os pratos ou é jejum. O amor em part-time não é o meu lugar. Amo-te nas ausências e nas fugas, nas pausas e nos silêncios e mesmo quando tapas, com força, os olhos e ouvidos à passagem da minha sombra, mesmo quando me procuras noutras bocas e nos colos que não te chegam, que não te calam, não te sabem matar por dentro, de fome, de choque, na vertigem do toque. Deixo-te ir e nunca corro atrás porque te quero sempre comigo, porque de ti não fujo mais, subo a paredes caiadas em vácuo que caem no mar, arrasto redes na ilusão de te captar as sedes, num cheiro, num sopro, quase num estrondo o verbo que desisto de contornar.
Uma vida sem sal, de contenções e convenções, de limites e regras, de cuidados exacerbados, a que sabe? Sabe a coisa nenhuma, a frustração, sabe a dúvidas e receios, a espartilhos e a cintos de castidade. Sabe a papel velho e mortiço, sabe a planos engelhados, a brasas apagadas e esterilizadas emoções. Que não se poupe no sal da vida, no sentir e mostrar. Modere-se tudo menos os sentimentos em erupção, a apatia insossa nunca será opção. Mesmo que a sede se instale, que assim se multiplicam os prazeres, o do sal e o da água fresca em resposta, a acicatar. Qualquer doçura com uma pitada de sal ganha volume e delícia, espessura, a sensualidade dum pó de malícia. Sejamos volúpia de línguas e de lábios, sejamos oceano na imensidão, peito aflito da cor opaca do infinito. Sejamos protagonistas de beijos sedentos, gelados, na pele salgada, nas bocas carnudas de paixão.
Não me peçam para ser brisa obediente e contida. Sou vendaval, sou Ventania. Sou alvoroço sem rédeas nem gaiolas. Sou aquela que abre todas as jaulas e que liberta os prisioneiros dos grilhões de si próprios. Não me peçam a paz enquanto houver tiranos, eu serei a que degola os amos. Não esperem que consigam domar ou dominar-me, só eu sou dona de mim. Sou a mais doce que vira fera, com tanto de calmaria como de revolução, com igual dose de mel e de bagaço, embriagada e ática incógnita à toa na imensidão. Sei que tanto é demais, incomportável, que todos preferem açúcar puro, veneno maduro oculto, embrulhado em algodão.
Sou sal, sou cristal de vida e fogo, saio fora dos riscos e ignoro os mandamentos. Mesmo sem aqueles a quem pertenço ainda sei voar; sigo sozinha se preferem ficar, mas sigo triste, órfã de lar. Sou o fumo de que troçam, o carvão que os ensombrece, sem vaidade, o chiste que ninguém soube decifrar. Sou o supérfluo excesso dispensado, à cautela, para não entornar. Sou aquela que derrete o gelo, aquela que nunca esquece, a que arde nas feridas, cardápio de dores da alma. Sou a impossível de amar.

 

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[Amor de prateleira (parte I)]

 

Ouço-te as lágrimas que escondes, recolhido, embalado em canções que picam e arranham esse coração frágil, de papel, amachucado e vincado das palavras que foram apagadas e reescritas, dos nomes e sinais e rabiscos nas margens. Estendo-te a mão, enxugo lamentos ácidos que sempre vertem em corrosão para o meu colo, que vou-te amparando como posso, com silêncios e os abraços apertados que não te tocam a pele para não melindrar, para não deixar marca - não como queria, com abraços sufocantes, com lágrimas e saliva e contigo embrulhado num novelo pendurado ao meu pescoço, colado ao meu umbigo, os meus ossos escudo protector, os meus cabelos manto de solidão. Envelheço, às escuras. A espera tornou-se uma constante sem incógnita, tudo às claras, mas nem a luz preenche o vazio da antecipação do que está condenado a não chegar. Hoje sou cinzenta, esmorecida. Bordei letras com minúcia, inscrevi-te em mim, dei-te o tempo e espaço de privilégio no peito, onde te cravaste com pregos, na cruz de te querer. Dei-me por inteiro e sem reservas, atirei-me de cabeça e sem pára-quedas, esperando que me acolhesses sem medo de nos crescerem asas negras. Estatelei-me no chão. Quebrei ossos, lombada, as letras amontoadas ficaram espalhadas em rios, pelas nuvens e nas dobras geladas de cada suspiro, nas cavernas longínquas de segredos sem legendas que se lêem nas bocas mudas. Não te mereço palavras meigas, não me sopras poesia, guardas os abraços para quem não queima. Lamentas, não mais do que eu. Dás-te em luz ao mundo, nas não a mim, que já te vi por dentro; não poderias dar-te sem ser por inteiro, em loucura, lava viva sem travões a reformular as verdades, céu abundante de estrelas em vôo picado para o infinito. Talvez tenha de te encerrar de vez num velho livro morto, onde nenhuns dedos curiosos se entretenham a investigar quem fomos nos tempos de andorinhas e de fogo-de-artifício sobre o rio. Olhas o espaço vazio em que eu morava na tua colecção, como se não soubesses ao certo quem o ocupara, talvez já esquecido do sabor dos meus beijos de baunilha e canela picante. Aproximas-te num pulo, em urgência acesa pela ausência, o queixo escorrega em choque, os lábios derretem. Acaricias o intervalo vazio com dedos de fantasma, delicados e etéreos. Caída no mesmo soalho onde jazem também os outros nomes sem título que dizes ter amado, em monte que aguarda a purificação pelo fogo e esquecimento, desvaneço, página por página, ignorada, virgem de ti, desperdiçada. Se existisse ainda inteira poderia ter testemunhado o som áspero de um soluço, ou visto em câmara lenta o momento em que te contorcias no chão, serpente de sangue quente, gemendo a saudade em golfadas. Mas o conto segue desenfreado, na mesma rota. As pálpebras encerram capítulos como quem gira ponteiros e em breve já nenhum espaço sobra naquela prateleira, repleta de romances descartáveis sucessivos, consumidos em série, sem que algum te consuma o fôlego ou te apazigue o gelo estonteante do coração.

 

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Porque é que temos medo das palavras? Meras letras atabalhoadas, embrulhadas, engasgadas, atadas sem rumo, atiçadas sem faísca. As palavras, imateriais poderes sem forma, não ferem, não matam, são frágeis impressões desconjuntadas. Porque nos desviamos suados das farpas esdrúxulas? Atiro com força novelos de palavras pesadas como culpa, como amor, como paixões em brasa. Trespassam os alvos como fantasmas, espectros imaginários que só eu vejo. Escrevo para quê se as palavras são inócuas, se nem se dão ao trabalho de decifrar a sua composição molecular, de responder ou plantar uma semente de palavra viçosa, como carinho, a ver se pega e cria raiz? Fugimos de verdades sussurradas como se fossem quedas certas ao abismo. Visto uma capa grossa de navalhas apontadas às palavras mansas que me tecem com uma doçura que desprezo, repetida a papel químico. Nunca me escreveram um poema, sequer uma bula médica ou manual de instruções, alguma coisa só minha. Sempre leitora, jamais musa. Nem amores nem amantes, todos com medo de ficar reféns das palavras que não lhes mereço. Tolos, coleccionam exclamações para me impressionar mas, cobardes que são, deixam rastos de reticências pelo chão.
A chuva de Verão bombardeia as janelas e é nesse transe que as percebo, às palavras, na aleatoriedade das pingas, como se de ofensas líquidas se tratasse. Temos medo das palavras como temos medo da chuva. Medos inúteis, que ninguém se dissolve na água ou nas letras e a mudança de que são capazes é apenas temporária. Inundem-me, pois, de palavras molhadas para que as navegue, para que nelas te ensine a nadar, ou para ser capaz de naufragar.

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Sabia-te de cor sem te saber o nome; vi-te na primeira frase além da capa que ergues como escudo, na escuridão diária que vais despindo para mim e és só tu, animal anónimo, todo do desejo e da solidão. Um beijo velado pelo silêncio de paredes caiadas vai sendo desatado, abraços longínquos sempre presentes amarram-me a cada promessa que te afasta e a luz assegura-me que um dia te trará aonde pertences, aqui.

(Desafio da Pastelaria Studios)

Os silêncios têm sempre razão de ser. Nenhum prado fresco e verdejante se transforma instantaneamente em dunas áridas e escaldantes sem razão. Algum ácido se derramou e consumiu cada broto, cada semente; algum sal inquinou para sempre o potencial da terra; alguma sede sorveu até à última gota de orvalho. Adormeceu fértil e viçoso para acordar seco, quebradiço e defunto.
Lamento. Não vou tornar a queimar as solas dos pés, sem rumo nem bússola, para esgravatar motivos à unha. Não tenho tempo nem motivação para peneirar toda a areia deste deserto, grão por grão, enquanto ela se move em ventanias e tempestades, fugindo e regressando em ciclos sem rumo. O sol estala e estorrica a minha pele fina, o calor ferve-me as intenções. A gretar os lábios que seja por beijar noites frescas e trocar palavras de língua, não mais por falar para te ecoar em paredes vazias, sem retorno.

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Há um lado positivo em termos esta coisa esquisita que nos foi arrebatando mais assente em palavras escritas do que ditas, abraços e beijos essencialmente platónicos, imaginários ricos que não chegam ao papel. É que as palavras, se não dizem tudo, também podem dizer além do tolerável neste acordo tácito de contenção. Já perdi a conta ao número de vezes em que penso ou escrevo "amor" e reparo mesmo antes de enviar, consigo travar a fundo e apagar. Ando a fugir dessa palavra há algum tempo, talvez como prova de exclusividade para quem a merece acima de todos os outros, talvez pelo peso que acarreta, por não se poder desdizer. Se antes não se materializava sequer em pensamento, hoje está omnipresente em cada frase, mas não to posso dizer, colocar mais esse peso sobre os teus ombros, mais uma responsabilidade inconsequente a perturbar um quotidiano já enleado. Falo-te em carinhos e em orgulhos, em cuidados e mimo, não sei se já te confessei até uma admiração sem fim. Quantas vezes não fico parada a olhar as palavras escritas e as silenciadas, a abraçar-te sem que percebas, a desejar pendurar-me no teu pescoço para te coroar com verbos e beijos cheios. Calo mais do que digo, já sei que as palavras se fazem ocas. Mas o amor, esse, fica entredentes, guardado a sete chaves só para o eco de mim. Talvez o sintas - eu gostava. Talvez, se as probabilidades nos pregarem rasteira, até o consigas retribuir. Talvez reconheças quando é sobre ti que escrevo. Se um dia me descuidar e não travar, amor, perdoa tamanha desfaçatez. Perdoa que te queira mais do que devo, mais do que o previsto, muito mais do que o recomendável. Perdoa se um dia me cansar de não te olhar nos olhos, de não te pegar nas mãos frias ou de não te cheirar o cabelo. Perdoa se as palavras deixarem de amedrontar e te disser que te gosto e que este gostar é de amor.

Gosto de ti.

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Primeiro, as palavras. As que nunca ninguém antes havia dito. O respeito e a certeza que se foi instalando. A seguir a confirmação de que te esperava desde sempre. A Luz, a resposta passa pela luz que és, que acendeste em mim.

 

 

 (Feliz Aniversário, Amor. )

A retórica é apenas uma demolição de ideias, desconstruindo-as em pedaços indivisíveis e, por isso mesmo, impossíveis de refutar. Não vale, portanto, nada mais que a mesma ideia exposta da forma mais crua e directa, desprovida de argumentos e figuras de estilo, só é mais dissimulada nas intenções, pois ludibria quem se deixa apaixonar pelo som das palavras.

 

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O problema dos lugares é que ficam tatuados nas memórias, acoplados aos cheiros, às emoções [coração no túnel, fora do peito], ao tacto, ao som de cada palavra [tuas dentadas, bochechas salgadas]. Não se consegue dissociar o lugar das memórias fortes, felizes ou infelizes, e isso gera toda uma expectativa inconsciente de que os lugares, só por existirem, asseguram para a eternidade os sentimentos que outrora testemunharam. Por isso se recomenda não voltar aos sítios onde já se foi feliz. O cérebro adora encontrar padrões na realidade que apreende e espera a reprodução daquela outra felicidade [os beijos de nuvem, boca macia de volúpia]; claro que o mais certo [o amor não é física, não se reduz a explicações nem a fórmulas matemáticas] é a realidade não encaixar na expectativa. Se a História se repete é por falha no guião, alheio à natureza mutável do mundo e dos homens [podia bem ser a tua mulher]. Culpa da memória que vai lapidando e erodindo as recordações, às vezes forjando algum pormenor [as tuas mãos nas minhas mãos, o meu nariz aninhado] ou submergindo-o por inteiro.

Insisto na teimosia [camarada]. Lugares há em que deambulo todos os dias, vão massacrando pela repetição da ausência, raspando ao de leve a pele com uma lixa suave e meiga [a tua barba negra, os caracóis], mais e mais, até a ferida aberta já não ter pele nem carne nem osso nem sangue nem vazio [fome de ti]. Comprarei um seguro contra desgostos. Uma mezinha para me untar, inteira, loção de aço, à prova de corações partidos e promessas de poesia [Teresinha]. Não tenho como atravessar os mesmos lugares de primeiros beijos [tão doces] e joelhos no chão, com os cacos espalhados, enterrados.

Como é que se esquece, como é que se cala, como é que se ignora que estamos a ir no sentido oposto - e não era nada disto que eu queria [à nora]? Caramba, como é que se respira?!

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Nem sempre há palavras. Nem sempre se traduz em verbo aquele conforto que se quer ofertar, aquela quentura que reside entre dois braços enrolados. Queria dizer-te este abraço e não soube como. Queria dizer-te de modo quente, sólido, suave, como uma constância, como uma certeza. Queria dar-te o mesmo que te dou quando deixo o nariz divagar na tua barba, com aquela doçura provocadora com que te afago o pescoço. Queria ser eloquente como naqueles beijos intermináveis em slow motion em que nos damos sem nunca deixarmos de ser o antes e o depois. Queria ter o dom de dizer-te as coisas belas que me dizes quando um sorriso se abre, quando as reticências convidam. Nem sempre há palavras. Tenho de esperar que saibas ler-me o olhar.

(publicado originalmente a 07.12.2010)

Para que saibas, estou óptima. Mil vezes melhor do que quando estávamos juntos. Olha para mim, reconheces-me?! Olha para a minha pele fantástica, tão bem que me fica esta maquilhagem. Repara no brilho do meu cabelo, e no meu sorriso que nunca foi tão branco e direitinho. Nunca me viste sem aparelho. Os medicamentos estão a resultar e já quase não tenho dores. As drogas que me incharam também já acabaram, dentro de meses vou voltar ao peso com que me conheceste, vais ver. Vais ver-me passar à tua porta de sorriso em riste e vais ficar de queixo caído a pensar "Quem é aquele avião?", vais deixar o cigarro queimar-te os dedos de estupefacção.

 

Estou óptima. Passei o sábado inteirinho sem derramar uma lágrima, nem uma. Na minha casa está tudo nos seus lugares, como se nunca tivesses passado pela minha vida. A mala de viagem que me emprestaste para a mudança está na arrecadação, à espera que a venhas buscar. O perfume que me ofereceste está escondido e nunca mais o usei.

 

Estou fantástica. Aposto que de cada vez que bebes para esquecer acabas a chorar e a pensar em mim, nos erros todos que cometeste. Aposto que vais sempre, a vida toda, lembrar-te do que me disseste no último dia: que estás bem ciente de que nunca ninguém te vai amar como eu te amei, e que vais sempre, a vida toda, lembrar-te que nunca vais amar ninguém como me amaste a mim. Espero que te arrependas amargamente cada dia da tua vida do mal que me fizeste, como eu nunca me vou arrepender de nunca ter desistido de ti, de ter dado tudo e feito tudo pela promessa que tínhamos.

 

Mas não te preocupes, eu estou óptima. Não precisas de andar a verificar o obituário, não vou atirar-me de lado nenhum por não te ter. Não sou do género de fugir às dores, se me conhecesses saberias isso. Como é que pudeste acreditar que eu tinha mesmo encontrado outra pessoa passado um mês?! Um mês... Isso é o que tu fazes, é a tua forma de lidar com a minha ausência, procurar outro colo, que sabes que não vai resultar em mais nada, que sabes que nunca se vai comparar ao nosso amor. Não sou eu. Se me conhecesses, saberias. Se me conhecesses, ou não te terias apaixonado por mim ou nunca terias desistido sem antes tentar de tudo.

 

Sonhei outra vez contigo, naquela forma de assombração que consigo sentir e cheirar. Abraçaste-me e beijaste-me o pescoço enquanto pedias desculpa, mas eu sabia que era um sonho e só disse "vai-te embora". Apertavas-me com mais força e começaste a chorar, mas desta vez não foi suficiente. Nem sonhos, nem mentiras, por muito que queira acreditar, já não servem. Tornei-me cínica, desprezo o amor, desisti de tudo e a culpa é inteiramente tua. Mas eu estou óptima. Mil vezes melhor do que quando estávamos juntos. No sábado não chorei uma única vez, já te disse?

rapaz, as palavras não deixam de existir quando viras a página. As palavras não são engolidas e o passado não evapora.

A tua história, a minha, a de toda a gente, é o percurso, o ontem, o hoje e será o amanhã. O que somos hoje é fruto do que vivemos, as feridas que hoje temos são resultado de dores infligidas antes e os medos que temos existem pelas razões de cada um de nós.


Podes virar tantas páginas quantas quiseres, mas elas vão continuar a existir independentemente de ti.


 




 


my boy, words don’t cease to exist when you turn the page. Words are not swallowed and the past doesn’t evaporate.


Your story, mine, everybody’s story, is the path, the yesterday, the today and will be the tomorrow. What we are today is the product of what we have lived, the wounds we carry today are the result of pains inflicted before and the fears we have exist for our very own reasons.


You may turn the pages as much as you want, but they will keep existing regardless of you.

Eu soube que era realmente o fim, quando o obriguei a passar por cima da cobardia de me comunicar via messenger e lhe disse, de cabeça erguida, que não era pessoa para tolerar uma dispensa assim, a seco – era o que mais faltava! Se depois de quase cinco anos de namoro sólido, depois de todas as promessas, depois de ter posto o joelho no chão e me ter feito uma pergunta em plano b, e depois de andarmos durante meses a fio a ver apartamentos e depois de na segunda-feira dessa mesma semana termos feito a reserva do apartamento que queríamos e era perfeito ele pensou que podia simplesmente enviar umas frases no messenger a dizer que tinha acordado e foi para a praia pensar e que afinal não, não era aquilo que queria, estava redondamente enganado. Se foi olhos nos olhos o primeiro beijo, num quarto de hospital em que a família toda podia entrar a qualquer momento, o fim merece pelo menos ser também olhos nos olhos. Não entendi, pedi razões, que ele não deu. Não porque não. Ele não tinha razões para acabar aquela peça de teatro, mas também não havia grandes razões para continuar e quando percebi isso concordei e até agradeci,  porque não sabia, não sei ainda, desistir e se não o fizerem por mim eu continuo a nadar contra a maré ad eternum. Soube que aquele era realmente o fim porque aceitei, porque no fundo fazia sentido. Soube que era realmente o fim porque antes dele me ir buscar à faculdade tinha dado uma aula das melhores, com toda a calma do mundo e sem pensar na reviravolta que a minha vida estava a dar enquanto fazia perguntas inspiradas e os alunos defendiam os trabalhos, porque no fim uma aluna me dizia que eu era das melhores professoras que tinham tido aquele ano e eu sorria com a constatação de que são as surpresas que nos fazem avançar. Soube que era o fim porque durante a conversa não houve lágrimas, só uma calma estrondosa, porque ainda fomos jantar e encontrámos no caminho o rapaz que me fez hesitar cinco anos antes, que me empurrou o baloiço madrugada dentro naquele verão de surpresas sem fim e que eu, como ele, fiz por ignorar porque já tinha conhecido outra pessoa. Soube que era o fim porque falámos de coisas concretas, desapaixonadas e insípidas, como quem falava com a imobiliária, tem de se cancelar a conta conjunta, os meus livros, os teus filmes, o conjunto de barbecue, fica lá com o conjunto de barbecue, sempre foste mais dado a churrascadas com o clã. Soube que era definitivo quando ele parou o carro e eu lhe dei um beijo de despedida e esperei até entrar em casa para deixar as lágrimas correrem pelo ponto final que era o ralo.


Os finais têm sempre beijos de despedida. Quando não os há fica o espaço em aberto a aguardar o desfecho.