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Ventania

Na margem certa da vida, a esquerda.

Ventania

Na margem certa da vida, a esquerda.

origem
O esoterismo exerce um fascínio sobre mim há muitos anos, talvez desde sempre.

Muitas pessoas estranham que alguém que, para além de ter uma sólida formação científica, tem traços tão vincados de racionalidade (por vezes exagerada), se interesse por temas que abrangem desde o Tarot, astrologia, premonições, fantasmas, ou tudo o que seja "o oculto". E nada de contraditório há nisto. Bem pelo contrário.


Mesmo antes de ser cientista, percebi que a ciência serve melhor os seus propósitos quando coloca as questões certas e explora possibilidades, do que quando fornece respostas definitivas. É claro que hoje em dia a Ciência explica uma grande parte do nosso mundo, mas é sempre mais fascinante o que ainda não se sabe explicar, e importa perceber que a Ciência não explica tudo. É aqui que grande parte dos cépticos cai em falácia, permitindo-se apenas a pensar dentro dos limites do que está provado e estabelecido, achando que tudo o mais serão esquemas e truques, ilusões e teorias alucinadas (muitos casos são tudo isto, sem dúvida). Quanto a mim, acho que estas posições são precisamente vitórias da ignorância...


Ninguém com um verdadeiro espítito de cientista pode acreditar que só o que está explicado, provado e verificado é real - ou seria o fim da investigação. É duma arrogância quase imbecil pensar que se algo não está comprovado cientificamente é uma "superstição" ou "ilusão". É, aliás, quase tão imbecil como contrariar todos os factos de que dispomos, se os mesmos se opõem a teses religiosas ou a mentiras que foram culturalmente assimiladas; por exemplo, a negação da Evolução e da Selecção Natural por parte de alguns católicos mais tradicionais, que acreditam mesmo que foi uma entidade abstracta que criou o mundo em sete dias, a Eva duma costela do Adão e por aí fora. Acreditam nisto e nem sequer têm abertura para que na escola sejam abordadas teorias diferentes. Ignorância, mais uma vez. Pior, propagação da ignorância.


Atenção, com isto não estou a colocar em causa a Fé que cada pessoa possa ou não ter, que considero algo de muito íntimo e individual, expresso através duma religião ou apenas espiritualidade, ou filosofia de vida, o que se lhe queira chamar. A Fé uma expressão profunda de certezas e dúvidas, creio. Eu fui agnóstica até ao início da adolescência, na melhor das hipóteses, e desde então ateia convicta - lá está, a absoluta falta de Fé. Conheço, no entanto, dúzias de pessoas da Ciência que acreditam num Deus, que interpretam os 'textos sagrados' de vários modos, e não é a sua Fé que interfere nem no seu desempenho nem na visão racional do mundo.


Na Ciência, na Religião, na Filosofia e em todas as decisões com que o ser humano se confronta, nada há mais legítimo do que a dúvida, a hipótese (ponto de partida, aliás, do método científico). Portanto, também não posso afirmar categoricamente "Deus não existe" - é o que eu acho, é nisso que eu acredito, mas posso estar errada, claro. Quando ouço pessoas a desdenhar de teorias não comprovadas, sejam a possibilidade de viagens temporais ou astrologia, seja a evolução da pilha de hidrogénio ou o Tarot, fico algo indignada, ao mesmo tempo que atesto a minha própria hipocrisia quando desdenho de algumas crenças religiosas, mitos ou "milagres" - reparem nas aspas hipócritas.


Assim, aqui a menina tem tanto de céptica como de mente aberta. E digo-vos mais, faz-me todo o sentido que o Universo se reja por energias que ainda não conhecemos completamente, para além das que já conhecemos. Acho perfeitamente plausível que estas energias possam deixar 'impressões' dos mortos ou de acontecimentos, ou que a posição dos astros tenha alguma influência na energia pessoal e nos ritmos de cada um, ou que emitam 'sinais' que algumas pessoas captam mais facilmente que outras. Faz-me sentido porque comprovo o que dizem as teorias sobre os meus trânsitos planetários, porque eu própria e pessoas muito próximas têm o chamado sexto-sentido (ou instinto) apuradíssimo, porque alguns animais conseguem detectar sismos antes dos mesmos acontecerem e ainda não se sabe bem porquê, porque há "milagres" atestados clinicamente.





(E sim, também acredito que exista vida extra-terrestre. Mas aqui é mais uma questão matemática, probabilística, puramente racional. Além do que já vi ovnis, mas isso não interessa nada.{#emotions_dlg.blink})

Todos os dias têm a sua história, um só minuto levaria anos a contar, o mínimo gesto, o descasque miudinho duma palavra, duma sílaba, dum som, para já não falar dos pensamentos, que é coisa de muito estofo, pensar no que se pensa, ou pensou, ou está pensando, e que pensamento é esse que pensa o outro pensamento, não acabaríamos nunca mais.

 

José Saramago In Levantado do Chão, Ed. Caminho, 14.ª ed., p. 59