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Ventania

Na margem certa da vida, a esquerda.

Ventania

Na margem certa da vida, a esquerda.

origem

Não choro, que não quero
Manchar de pranto
Um sudário de força combativa.

Reteso a dor, e canto

A tua morte viva.

 

A tua morte morta

Pelo próprio terror em que ficaram

À sua frente

Aqueles que te mataram

Sem poderem matar o combatente.

 

O combatente eterno que ficaste,

Ressuscitado

Na voluntária crucificação.

Herói a conquistar o inconquistado,

Já sem armas na mão


Quem te abateu, perdeu a guerra santa

Da liberdade.

Fez brilhar na manhã do mundo inteiro

Um sol de redentora claridade:

O teu rosto de Cristo guerrilheiro.

 

Miguel Torga , 11/Out/1967 in «Diário VIII»

 

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91 anos sobre o seu nascimento. Exemplo maior de revolucionário fiel aos seus ideais, abnegado, verdadeiramente internacionalista. Podia ter tido uma vida confortável, de burguês. Em vez disso, ajudou a mudar o mundo e foi assassinado aos 39 anos. Honra eterna. Hasta la victoria, siempre! 

Era mais um primeiro dia, adiado há meses por todos os travões que compõem as fugas. Era, como sempre, o Rossio que ampara encontros e desencontros. Era mais uma ginja, daquelas que deviam dar desculpa à língua para se soltar.

Era a cabeça às voltas com as inevitabilidades de fins e começos de motins internos, de desarranjos emocionais. Era a chuva nos óculos dele e um regicídio por celebrar. Foram palavras hesitantes e atrapalhadas, banalidades, sorrisos e silêncios dentro do olhar que diziam muito mais. Havia ali uma estória por ser escrita, a termo incerto.

Novamente, o Rossio. Novamente uma ginja desencontrada e um ano mais sobre o regicídio que abriu portas à República. Novamente, silêncios entre a chuva e decisões idiotas a serem tomadas com parcas palavras, que dos silêncios distantes de uns se fazem as aproximações de outros. Feridas abertas precisam de pensos rápidos quando a negligência já não chega para estancar.

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[Crónica publicada no Repórter Sombra]

A indústria farmacêutica é uma das mais lucrativas do mundo, e um dos tentáculos mais cruéis do capitalismo. Mercantilizar um direito fundamental como é o acesso à saúde é uma opressão brutal sobre todos os que não têm condições económicas para se proteger, tratar ou curar. Este é um ponto basilar de toda e qualquer discussão sobre saúde e que não pode ficar arredado do pensamento. O capitalismo mata gente, ponto. Mata muita gente. Mantém doente e incapacitada e em sofrimento agonizante muita gente. Limita a liberdade, a mobilidade, a capacidade de trabalho (logo, a subsistência) e o bem-estar de ainda muito mais gente.

Posto isto, não deixa de ser espantoso que se criem resistências patetas, baseadas em ignorância, medo, mitos e desinformação, talvez laxismo, a soluções preventivas que são acessíveis. A corrente New Wave de anti-vaxxers que coloca em causa não só a própria vida como a saúde pública é um perigo global que já trouxe de volta doenças que tinham sido dadas como erradicadas (como o sarampo) e vai permitindo à selecção natural actuar de formas que já deviam estar em desuso.

Tomemos o exemplo da vacina da gripe. Em Portugal, esta vacina é disponibilizada gratuitamente para uma parte das pessoas consideradas grupos de risco e é uma protecção eficaz contra um vírus muito mutável, que causa uma doença extremamente comum, potencialmente debilitante e mesmo mortífera se existirem complicações. Mas proliferam vários mitos sobre a mesma e a maior parte das pessoas dispensa a vacina, mesmo podendo adquiri-la sem esforço ou gratuitamente. Já ouvi desculpas como “as vacinas são para os velhinhos” ou “se apanhar a vacina é certo que fico doente a seguir”. Não, as vacinas não são só para os velhinhos. São indispensáveis a todos quantos fazem parte de grupos de risco (pela fraca imunidade ou pela exposição acrescida, por exemplo), de todas as idades, mas são também úteis a todos os outros, já que não é raro os surtos de gripe tomarem características epidémicas. E não, a vacina da gripe não contém vírus activos, pelo que não vai provocar gripe a quem a toma. Não vai é a tempo de evitá-la caso o contágio se tenha dado antes (o período de incubação varia entre um e cinco dias).

É também comum, em Portugal, empresas de média ou grande dimensão facultarem aos seus trabalhadores a vacina contra a gripe (não porque sejam beneméritos, mas porque pretendem evitar o absentismo e quebra de produtividade dos trabalhadores doentes). Mas graças aos mitos e desinformação, grande parte dos trabalhadores recusa esta protecção. Destes, a maioria está, pouco tempo depois, a tossir e a espirrar nas salas e corredores (que ficam passíveis de confusão com um sanatório), para cima dos equipamentos comuns, a usar as mesmas maçanetas e torneiras que toda a gente. Ou seja, a potenciar o contágio. E isto também porque ninguém quer perder o salário de uns dias “só” por causa de uma gripe. Ao contrário do que alguns patrões e chefias pensam, os trabalhadores não vão trabalhar doentes por “amor à camisola” e extrema dedicação, mas porque precisam do salário.

A falta de civismo também é um dos factores de propagação da doença. Seja numa sala de espera de um hospital ou centro de saúde ou em qualquer transporte público, é quase um milagre não apanhar uma doença contagiosa. Pessoas de todas as idades a espirrarem alarvemente e a tossirem sem taparem a boca, além de uma tremenda falta de maneiras (não no sentido de etiqueta, mas no sentido de respeito pelo espaço individual) é um cenário comum que demonstra um desprezo generalizado pelas mais básicas regras de higiene, que se junta ainda à falta de hábito de lavar as mãos e à pouca vontade quando só há água fria nas torneiras e está um frio de rachar. As normas sociais que impelem aos apertos de mãos e beijinhos são o golpe final para concluir o cenário de surtos de gripe uma ou duas vezes por ano.

O investimento da Direcção Geral da Saúde em prevenção da gripe existe, mas sem particular notoriedade, pelo menos do ponto de vista do cidadão comum. No Sistema Nacional de Saúde, a falta generalizada de equipamentos suficientes e eficientes para cobrir as necessidades das populações (hospitais e centros de saúde com serviços de atendimento permanente, para começar) levam a salas de urgências a abarrotar e a tempos de espera intoleráveis, em que a exposição a agentes infecciosos aumenta consideravelmente. Um apontamento muito positivo é aqui devido à Linha Saúde 24 (808 24 24 24), que disponibiliza de forma gratuita aconselhamento cuidado e encaminhamento dos utentes.

Quem ganha com tudo isto? A indústria farmacêutica de que estamos reféns, que vende a solução preventiva e vende uma miríade de remédios para tratar cada um dos sintomas (um para a febre, um para a tosse, um para as dores de garganta…). Depois do enorme embuste que foram as vacinas contra a Gripe A (vírus H1N1) há nove anos, para responder a um alarmismo sobredimensionado, mesmo os mais ingénuos já perceberam que não estamos a falar só de uma relação económica simples entre procura e oferta. Estamos a falar de um negócio multimilionário assente num complexo sistema de interesses que joga com dinheiros públicos, privados e com a saúde das populações. Faz-nos pensar, por exemplo, se terá sido só coincidência que num inverno como este, em que o pico esperado do surto de gripe tardou mais do que o habitual, as vacinas contra a gripe tenham estado genericamente esgotadas até ao final de Dezembro...

A saúde das pessoas, que deveria ser prioritária ao longo de todo o processo (da informação à prevenção, do diagnóstico ao tratamento) é uma espécie de efeito secundário neste enredo em que cada um de nós é apenas mais um consumidor. Deixar a saúde nas mãos gananciosas do grande capital significa que são as leis do mercado que controlam tudo. As soluções que curam não são rentáveis para as farmacêuticas, pois estariam a anular rendimentos futuros. Assim, o interesse da indústria não é produzir curas; é manter os doentes dependentes de medicação a longo prazo com drogas “cronificadoras” das doenças. Por outro lado, as doenças que afectam sobretudo populações com pouco poder de compra vão sendo negligenciadas e o investimento em investigação e desenvolvimento de medicamentos foca-se nas maleitas do mundo ocidental e desenvolvido. Não é por mero e infeliz acaso nem por inépcia da ciência que doenças devastadoras como a SIDA, malária ou tuberculose não tenham ainda curas definitivas e vacinas completamente eficazes conhecidas, ou que as populações dos países em desenvolvimento só pareçam ser apelativas para a indústria do ponto de vista dos ensaios clínicos.

Entre a ignorância que rejeita a vacinação e empola surtos de doenças erradicadas ou ‘apenas’ de gripe, e a ignorância da alienação e passividade perante o controlo da civilização por parte do poder económico, há pontos comuns e é nestes que devemos, colectiva e individualmente, reflectir. A ignorância, como o vírus da gripe, é contagiosa, propaga-se rápida e facilmente e não se cura com antibióticos. Além disso, inicialmente aparenta ser uma perturbação sem grandes consequências, passageira, mas abre a porta a complicações muito maiores e gravosas. Mas ao contrário do vírus, infelizmente, não há vacina que nos proteja contra a “infecção”. Cabe a cada um de nós fazer a profilaxia individual (informação, raciocínio crítico e higiene intelectual) e estimular os outros a fazerem o mesmo.

Da mesma forma que as doenças são incuráveis só até se descobrir a cura, também os poderes só são invencíveis até serem derrotados.

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[Crónica publicada no Repórter Sombra.]

No rescaldo de mais uma Conferência das Nações Unidas sobre as Alterações Climáticas do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Alterações Climáticas), a COP24, ocorrida em Dezembro na Polónia, ousemos perguntar o que nenhuma televisão ou jornal mainstream perguntou: que avanços fez a maior autoridade mundial no tema em relação à mais premente ameaça global? A resposta é triste. Nada. Zero. Bola. Nicles.

Além de relatórios com dados científicos que apontam as balizas máximas a que podemos permitir que o planeta aqueça (“muito baixo dos 2°C”), cálculos optimistas e prazos demasiado permissivos para nos desviarmos do caminho do descalabro, o IPCC queda-se entre a impotência e a inépcia para realmente mudar o curso fatalista para que o capitalismo nos atirou.

Este organismo da ONU existe há trinta anos e o melhor que conseguiu até agora foi forjar acordos que têm sido incumpridos pelos signatários e desprezados por países que são responsáveis por grande parte da quota de emissões de gases de efeito de estufa. Os Estados Unidos da América anunciaram a saída do Acordo de Paris em Junho de 2017, o Brasil já deu sinais no mesmo sentido, e todos os países cuja economia depende dos combustíveis fósseis rejeitaram o último relatório do IPCC, divulgado em Outubro: EUA, Rússia, Arábia Saudita e Kuwait.

Em 1997, os signatários do Protocolo de Quioto estabeleceram a meta de redução de 18% (20% na União Europeia) das emissões de gases com efeito de estufa em comparação com os valores de 1990. Os EUA não assinaram e desde então Canadá, Rússia, Japão e Nova Zelândia ficaram fora do acordo, pelo que este compromisso só abrange cerca de 14% do total de emissões. Em 2014, a UE ratificou o Acordo de Paris, comprometendo-se com a meta vinculativa de 40% de redução (face a 1990) das emissões até 2030. Como expectável, este acordo de boas intenções não teve impactos significativos fora dos documentos e resultou em coisa nenhuma.

Ainda que fossem cumpridas as metas propostas por um documento que só abrange 55% das emissões de gases de efeito de estufa, as suas repercussões seriam insuficientes. Mas não é o caminho da redução de emissões que o mundo está a tomar. 2018 foi o ano recordista de emissões, com a concentração de CO2 mais elevada dos últimos três milhões de anos. Os vinte anos mais quentes da História ocorreram nos últimos vinte e dois anos. Ao passo que os governos neoliberais enchem manchetes de slogans apelativos a falar da descarbonização, de empregos verdes e de energias renováveis, na prática continuam a apoiar as indústrias petrolíferas e as actividades delas directamente dependentes, a concessionar áreas para prospecção de petróleo e gás, a fomentar a massificação do transporte aéreo, a penalizar os trabalhadores com taxas e impostos sobre veículos e combustíveis, a negligenciar a premência do combate às alterações climáticas e a não apresentar alternativas viáveis para as questões energéticas, alimentares, para a mobilidade ou para as crises sociais decorrentes ou agravadas pela crise universal ambiental e climática.

António Guterres, secretário-geral da ONU, na abertura da COP24 pediu a governos e investidores que "apostem na economia verde, não no cinzento da economia carbonizada". Fê-lo na Polónia, país com uma actual dependência energética de 80% do carvão, na cidade anfitriã de Katowice, cuja mais significativa actividade económica é a exploração de reservas deste combustível fóssil. As próprias reuniões da conferência tiveram lugar numa mina de carvão desactivada e um dos patrocinadores oficiais do evento é uma empresa de exploração de carvão. O presidente polaco, na mesma sessão de abertura, faz a apologia da utilização do carvão pela via da “segurança energética” (leia-se lucro) e segue a sua performance de demagogia extrema ao afirmar que isto não conflitua com a protecção do clima, e que "os diferentes países devem abordar a política económica e climática de uma maneira realista, e evitar situações que ameacem a estabilidade das suas sociedades", já que, embora "a acção climática represente muitas oportunidades e benefícios económicos, sociais e de saúde, também gera custos, especialmente em regiões tradicionalmente baseadas nos combustíveis fósseis". Ou seja, num evento que deveria centrar-se na ciência e nas políticas necessárias a evitar o colapso civilizacional, a palavra mais repetida continua a ser economia e o tema central continua a ser o capital.

Observemos, então, temas colaterais de somenos importância, como vidas humanas. Estima-se que a média anual de deslocados por mudanças climáticas entre 2008 e 2016 chegou a 25,3 milhões e, a continuar a este ritmo, as alterações climáticas serão responsáveis por 200 milhões (sim, duzentos milhões!) de refugiados climáticos até 2050. A Organização Mundial da Saúde estima sete milhões de mortes anuais por causas directamente relacionadas com a poluição. Ainda que observemos apenas a perspectiva capitalista, a mesma OMS estima que, nos 15 países que emitem maior quantidade de gases com efeito de estufa, os impactos na saúde da contaminação do ar custem mais de 4% de cada PIB, ao passo que as acções para alcançar as metas do Acordo de Paris custariam cerca de 1% do PIB mundial. Dá que pensar? Pensemos mais um pouco.

Sabemos que apenas 100 empresas são responsáveis por 71% das emissões globais de gases de efeito de estufa. Estamos a destruir a atmosfera (e a civilização como a conhecemos) para que muito poucas pessoas tenham acesso a lucros estratosféricos. Essas pessoas são tão mortais quanto o resto de nós, os seus descendentes e os nossos. A bem de quê? Do lucro imediato, da sustentação de um sistema que assenta na exploração de quase todos por parte de uns poucos? O lucro não pode continuar a ser colocado acima da vida de biliões de pessoas!

O máximo que podemos permitir que as temperaturas médias globais subam em relação a níveis pré-industriais é 1,5ºC (e até 2018 a subida média registada já é de 1ºC). Para isto ser possível, é necessário cortar as emissões em cerca de 50% nos próximos onze anos, até 2030, e atingir a neutralidade carbónica em 2100. Isto não significa que não existam já consequências graves neste momento (a abundância anormal de fenómenos climáticos extremos, secas e fogos florestais devastadores, a subida do nível médio da água do mar, com impacto directo na vida de pelo menos metade da população mundial), significa sim que, a partir deste limite, a vida nos moldes em que a conhecemos hoje será insustentável. Os efeitos das alterações climáticas e da geopolítica de um mundo orientado globalmente para produção de lucro são directamente responsáveis por crises migratórias, por escassez alimentar, por guerras e por crises sociais e humanistas. As populações mais vulneráveis são as mais pobres e fustigadas e, dentro destas, as mulheres são sempre o grupo mais fragilizado. Além de irracional, é eticamente aceitável que continuemos a permitir, impávidos e serenos, ao homicídio em massa da Humanidade?

Nem todos estamos de braços cruzados a aguardar o ponto de não retorno. O número de activistas envolvidos em protestos contra as alterações climáticas e a exigirem aos seus governos acções concretas e drásticas na redução de emissões de gases de efeito de estufa tem sido surpreendentemente grande, dizem os media, mas este factor surpresa só existe por parte de quem não reconhece a centralidade e urgência desta luta. As consequências das alterações climáticas são catastróficas para todo o planeta e o tempo de agir é agora, pelo que na verdade, do ponto de vista do activismo pela justiça climática, muitos mais (virtualmente, todos) são necessários.

A luta não é vã. Em Portugal, com apenas três anos de luta coordenada entre a sociedade civil e pequenas organizações ambientalistas, foram cancelados 13 dos 15 novos contratos previstos em 2015 para exploração de hidrocarbonetos (e os dois ainda activos, para exploração de gás nas zonas de Aljubarrota e Bajouca serão também suspensos), o que significou uma derrota estrondosa do plano de um governo que tem apoiado de forma despudorada as grandes empresas petrolíferas. Contudo, isso é apenas uma ínfima parte das lutas que têm de ser travadas em todo o mundo, porque a única forma de não mudar o clima de forma insustentável é mudar o sistema. Não há forma de a civilização como a conhecemos ultrapassar isto de outra forma. Não nos podemos dar ao luxo de perder esta luta.

(Crónica publicada no Repórter Sombra)

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A propósito de uma reflexão acerca das manifestações em França e na Bélgica dos “coletes amarelos” (gilets jaunes), despoletadas por uma crítica massiva ao aumento dos preços dos combustíveis e que fizeram o governo francês recuar na medida que havia proposto, poderia falar do poder da união e da mobilização, um dos temas que na vida particular trago sempre próximos e a postos para desembainhar. Poderia ainda apontar o dedo, em termos demasiado latos, vagos e generalistas, ao analfabetismo político que reina, elege e glorifica líderes, ao mesmo tempo que vai dando continuidade ao descalabro ambiental e social do planeta. Mas mais profundo e gravoso do que o desconhecimento histórico (que é um privilégio mais do que uma obrigação), ou que um pequeno ou nulo repertório de literatura política é o estado generalizado de acrisia, da ausência de pensamento crítico sobre o mundo que nos rodeia e que integramos. Portanto, em vez de optar pelo discurso fácil e permeável a demagogias, prefiro fazer o papel de advogada do Diabo e falar do lado obscuro da coesão consensual em torno de uma causa comum, com dois exemplos muito concretos e próximos da actualidade portuguesa e causas que me são particularmente caras.

A mobilização das massas faz-se facilmente com fórmulas populistas, pouco rebuscadas, de consumo rápido e sem exigências de palatos refinados ou técnicas de mastigação dos factos. Além das já célebres 'fake news' em que meio mundo embarca sem questionar fontes ou validar a veracidade das informações, a outra receita simples e de resultados quase infalíveis é a angariação de apoios em torno de uma causa comum, exacerbada e embandeirada na linha da frente de movimentos políticos, sejam partidarizados ou inorgânicos. Em qualquer dos casos, os aparentes “consensos inquestionáveis” podem ter agendas escondidas à partida, ou podem ser cooptados por grupos com intenções questionáveis.

Vejamos o exemplo das touradas. Recentemente, pouco antes da votação do Orçamento de Estado para 2019, vimos o tema da redução da taxa de IVA para espectáculos culturais (o que inclui espetáculos de canto, dança, música, teatro, cinema, circo e também "espectáculos tauromáquicos") ser deturpado e reduzido a uma bifurcação simplista (a tal “tinderização”) entre ser-se contra ou a favor das touradas. A ministra da cultura afirmou, e bem, que a questão das touradas é uma questão civilizacional. Daqui gerou-se uma onda de "apoio à ministra da cultura" nas redes sociais. Atentemos: não se tratou de uma onda de apoio à manutenção do valor máximo do IVA para "espectáculos tauromáquicos", não se tratou de uma exigência generalizada da diminuição da taxa de IVA para todos os espectáculos e bens de índole cultural, nem tão pouco se ousou exigir a abolição da tauromaquia; o movimento gerado foi de “apoio à ministra” do Partido Socialista. A mesma ministra que defende um orçamento paupérrimo (inferior a 1%) para a cultura. Este apoio é, no mínimo, estranho, porque a cultura é também, incontestavelmente, uma questão civilizacional.

Um povo inculto, árido de lazer e de conhecimento, é um povo embrutecido, mera engrenagem das máquinas de produção de riqueza para outrem. A cultura deve sim, ser acessível a todos, estimulada, disseminada e exultada! O problema das touradas não é a taxa de IVA que se aplica na venda de bilhetes para esse "espectáculo" bárbaro e asqueroso; o problema das touradas é existirem e serem consideradas espectáculo ou património cultural. O problema imediato e flagrante é, de facto, uma questão civilizacional e ética. O problema secundário das touradas é serem parcialmente subsidiadas pelo Estado, serem divulgadas em canais públicos de televisão, ou serem um sumidouro de fundos dos orçamentos do poder local. O sofrimento de animais numa arena para gáudio e diversão de mentes rudimentares e violentas é perfeitamente alheio à taxa de IVA que lhes é cobrada, até porque é uma classe economicamente privilegiada a que se predispõe a assistir a esses eventos de sangue e uma espécie de supremacia de fulanos de collants em cores berrantes e casacos de brilhantes sobre animais torturados. Nada menos do que a abolição de todos os eventos tauromáquicos é aceitável sob o ponto de vista civilizacional. E quem olha para este aspecto só poderia congratular os votos dos deputados que viabilizaram a redução do IVA nos espectáculos culturais, não estivesse distraído e esquecido de pensar um pouco antes de embarcar na capitalização governamental do seu oposto.

A "causa animal" é um filão excepcional para manipular as opiniões das massas e colher o seu apoio (moral e material). Neoliberais, sociais democratas, comunistas e apolíticos conseguem facilmente entrar em acordo na causa comum da defesa do bem-estar animal, contra os maus-tratos e o abandono de animais de estimação. Ainda bem que assim é, de facto, pois só criaturas desprovidas de empatia e humanidade podem conseguir direccionar a sua maldade para quem não se pode defender, sejam humanos ou outros animais.

O potencial mobilizador da causa é de tal ordem que o PAN, um pequeno partido político, relativamente recente, conseguiu ser catapultado para a representação parlamentar, feito que outros partidos mais antigos e com uma base eleitoral bastante sólida parecem longe de alcançar, como o PCTP-MRPP, o MPT, o PPM, etc. O partido de André Silva conseguiu eleger o próprio enquanto deputado precisamente embandeirando a “causa animal” como prioritária, esquivando-se a uma definição política mais concreta em relação às tradicionais questões fracturantes entre quadrantes políticos. O PAN define-se como “nem de esquerda nem de direita”, o que toda a gente com dois dedos de testa sabe significar uma posição à direita (se dúvidas houvesse, bastaria observar o sentido de voto de orçamentos e propostas de lei várias). Mas nem é isso que coloco em causa. O que me cumpre dizer e alertar é que qualquer suposta ‘neutralidade’ deve ser sempre questionada. Os eleitores do PAN são pessoas de esquerda, de direita ou apolíticos, cansados do sistema e da desgovernação do centrão, ou são habituais abstencionistas que (pensam que) fogem da política, e que gostam de animais. Ali encontraram a identificação com algo em que acreditam e isso bastou-lhes para associarem o partido à diferença por que anseiam e para lhes conquistar a confiança, apesar da própria noção de neutralidade política ser absurda.

Quem também já percebeu há muito o potencial do cavalo de Tróia da defesa dos animais (em particular, os domésticos) parecem ter sido grupos com ligações conhecidas a membros de grupos nacionalistas e neo-nazis. A mera suspeita destas ligações perigosas torna evidente até que ponto os defensores das causas estão dispostos a fechar os olhos a comportamentos duvidosos e incoerências como hipotéticas utilizações indevidas de fundos doados, por exemplo. Estes apoiantes acérrimos, quase fanáticos militantes (alguns não se inibem de fazer ameaças explícitas à integridade física de pessoas que apresentam indícios suspeitos ou opiniões que lhes são contrárias), podem efectivamente estar a defender grupos fascistas, nacionalistas, racistas e xenófobos. Mas isso não significa necessariamente que sejam fascistas, nacionalistas, racistas e xenófobos. São só uma massa popular que se deixa manusear e empodera os alegados benfeitores dos animais, ainda que isso possa implicar apoiar o populismo ou o fascismo.

A luta pela defesa e pelos direitos dos animais é muitíssimo válida e meritória, mas não nos podemos deixar iludir pela nobreza da causa quando esta é usada para escamotear agendas políticas potencialmente perigosas. Não pode valer tudo para fortalecer um único propósito. Não basta a bandeira da causa comum para justificar tudo o resto. O argumento do desinteresse pela actividade política não isenta o cariz político das acções individuais e colectivas. Um voto é um acto político, um donativo a uma associação é também um acto político, os apoios materiais e morais a algumas organizações e não a outras são acções políticas. E sim, a tomada de posições políticas requer análise crítica ou carrega consigo uma irresponsabilidade com consequências potencialmente devastadoras.

Encontrada que seja uma causa comum que sirva de mote, de preferência com forte carga emocional, de forma a possibilitar uma mobilização acrítica, capaz de reunir simpatia e apoios concretos, com poder de gerar choque mediático, basta agitar as massas com alguns slogans e aguardar para capitalizar este poder. Na eleição de Trump, o mote foi o nacionalismo concentrado na imigração e a construção de um muro na fronteira dos EUA com o México. A eleição vincadamente anti-petista de Bolsonaro fundamentou-se no ataque à corrupção (com um empurrãozinho de vitimização pessoal para justificar a absurda ausência de debate). E o mundo vai mudando, vai cedendo, vai-se tornando mais violento, inseguro e injusto.

Assim se faz política no século XXI. A informação é uma arma e está ao nosso alcance fazer uso dela. Que tal começar hoje?

A minha mais recente crónica publicada ontem no Repórter Sombra.

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Estamos na era da informação rápida, da Internet, da acessibilidade quase imediata a todos os conteúdos possíveis e imaginários com a facilidade de sacar de um smartphone do bolso e fazer uma pesquisa ou aceder a uma aplicação. A tecnologia permite facilidades e pequenos luxos como ir ao banco às duas da manhã, falar com a família do outro lado do mundo a custo quase zero, encomendar livros, queijo e detergentes enquanto estamos numa viagem de comboio entre casa e o trabalho ou criar afinidades e amizades com pessoas do outro lado do monitor, na rua abaixo ou do outro lado do mundo. Contudo, com o poder de alcance quase ilimitado da Internet e o imediatismo e potencial de dispersão das tecnologias, chegou também uma vasta panóplia de fenómenos perturbadores, para usar um eufemismo.

 

O potencial de dispersão de conteúdos digitais passíveis de ganhar destaque de forma exponencial (ou “viralizar”) é notável, nomeadamente através das redes sociais. A facilidade de expressão e de acesso veio democratizar o espaço anteriormente reservado apenas para uma elite privilegiada e poderosa e isso é extraordinário e uma das maiores virtudes destas novas formas de comunicação. A visibilidade possibilitada a todas as opiniões, teorias, correntes e contra-culturas marginais pode ser bastante positiva, uma vez que a verdade é que escasseiam os meios de comunicação idóneos, fiáveis, sérios, abrangentes e, convenhamos, que não estejam a soldo de uma agenda política neoliberal, centralista e que serve os propósitos dos poderes instaurados. É preciso procurar, muitas vezes em nichos específicos, sem expressão popular ou comercial de monta, mas as alternativas existem. Isto é válido tanto para informação noticiosa quanto para grupos de interesses específicos que jamais chegariam ao mainstream (do ambientalismo anticapitalista a talentos literários sem meios de autopromoção).

 

Contudo, com este recém-descoberto poder de influência ao alcance do comum mortal e, sobretudo, a que o comum mortal se torna susceptível, surge também a possibilidade de disseminação de conteúdos que representam perigos sérios, por propagarem falsidades com impacto social e político, teorias sem credibilidade científica ou apenas enormes embustes, alimentados pela ignorância e pelo ódio. Sem o efeito de megafone universal da Internet, teriam os anti-vaxxers ganho expressão suficiente para colocarem riscos sérios à saúde pública, com o despertar epidémico de doenças que estavam quase totalmente erradicadas há umas décadas? E os crentes na “terra plana” e as pseudociências (homeopatias, medicinas quânticas e afins) e os negacionistas das alterações climáticas e os criacionistas que querem a religião equiparada à ciência nas salas de aulas? O crescimento de movimentos de extrema-direita, um pouco por todo o mundo, teria dimensão suficiente para eleger democraticamente quem quer acabar com a democracia?

 

Desde os inócuos apócrifos de autores sobejamente conhecidos, às abjectas "fake news" criadas intencionalmente para deturpar a opinião pública num sentido que está longe da inocência, ou desde a idolatria de famosos que tantas vezes o são sem talento outro do que o de angariar seguidores, visualizações, likes e afins à elevação de analfabetos funcionais aos cargos mais poderosos do mundo, o fenómeno está disseminado. E o perigo, esse é assustadoramente real, actual e alastra como fogo, enquanto os mais informados e razoáveis se mantêm a observar passivamente, boquiabertos de incredulidade de como podemos ter chegado ao expoente máximo da acrisia generalizada. Encolhendo os ombros porque não há argumentos para contrapôr pensamentos sem qualquer substrato, alucinações baseadas em coisa nenhuma. Virando costas porque a discussão se torna tão imbecil que “não vale a pena” perder tempo.


A popularidade exponenciada pela tecnologia dos
social media cria heróis e vilões, constrói presidentes e culpados universais, uns na antítese dos outros, em extremos opostos, e na ânsia da simplificação, da análise imediata para consumo rápido, reduz os factos (reais ou “alternativos”) a memes, a hashtags e chavões. Como se só existissem duas opções, como se só as oposições absolutas tivessem lugar neste modo de raciocínio simplório, como se tudo fosse redutível ao preto e ao branco, sem matizes de complexidade ou profundidade. A esta bipolarização simplista e inconsequente só me ocorre comparar o Tinder: análise à queima-roupa, às aparências, ao que é visível à superfície, ou melhor, ao que nos querem mostrar, e daí segue o veredicto: sim ou não, swipe à esquerda ou à direita, serve ou não serve. Olhemos em redor e vejamos se não é esta tinderização de tudo que alimenta celeumas, escândalos, polémicas, opiniões populares e ódios. Em toda e qualquer clivagem ou onda de indignação da opinião pública a regra parece ser a escolha binária, contra ou a favor, embate de opostos. Noite ou dia, vai ou racha, ganhar ou ficar em último, santo ou criminoso, republicanos ou democratas, Brexit sim ou não, Haddad e PT ou qualquer coisa que seja anti-PT, ainda que seja o fascismo. Vale tudo até e além da mentira descabida para criar um falso sentido de escolha única e o caminho mais fácil e eficaz é a diabolização dos opositores, é a força do medo e do ódio, é o incitamento à eliminação dos que não são semelhantes ou ameaçam os privilégios próprios. Não falo contra a radicalização de posições, que a aversão aos extremos, tão válidos como qualquer posição intermédia, é frequentemente ignorância ou medo. Falo de assumir a complexidade dos temas, de debater com sensatez e sem negar e respeitar a existência de todos os naipes de opções, matizes e posições ambíguas, de conhecer a verdade, que é material e objectiva, e pensar sobre ela antes de tomar posição.

 

A validação da idoneidade dos veículos de informação tornou-se acessória. Se há umas décadas a falácia consistia em alguma coisa aparecer escrita num jornal ou divulgada na rádio para se tornar verdade perante o escrutínio do grande público, hoje em dia esse lugar parece ter sido substituído pela internet. É imperativo aguçar o espírito crítico para a validação de tudo o que se vê publicado e é necessário educar para a verdade, para questionar as fontes, para unir os pontos, para apurar os factos antes de cuspir veredictos inflamados pela indignação. É preciso aprender a ver, mais do que a olhar; a não julgar os livros pelas capas; a não aceitar ou rejeitar tacitamente pelo que é aparente e superficial. É preciso conhecer por dentro as coisas e pessoas antes do fanatismo e da rejeição, é preciso explicar, debater, argumentar, interrogar. É preciso ousar sair da caverna de onde só se conhecem sombras e enfrentar a luz, perder o medo que nos empurra e se nenhum dos caminhos que vemos nos servir, encher o peito de fôlego fresco e trilhar um caminho novo.

 

Liberdade

Não ficarei tão só no campo da arte,
e, ânimo firme, sobranceiro e forte,
tudo farei por ti para exaltar-te,
serenamente, alheio à própria sorte.

Para que eu possa um dia contemplar-te
dominadora, em férvido transporte,
direi que és bela e pura em toda parte,
por maior risco em que essa audácia importe.

Queira-te eu tanto, e de tal modo em suma,
que não exista força humana alguma
que esta paixão embriagadora dome.

E que eu por ti, se torturado for,
possa feliz, indiferente à dor,
morrer sorrindo a murmurar teu nome

 

 

Rondó da Liberdade

É preciso não ter medo,
é preciso ter a coragem de dizer.
Há os que têm vocação para escravo,
mas há os escravos que revoltam contra a escravidão.
Não ficar de joelhos,
que não é racional renunciar a ser livre.
Mesmo os escravos por vocação
devem ser obrigados a ser livres,
quando as algemas forem quebradas.
É preciso não ter medo,
é preciso ter a coragem de dizer.
O homem deve ser livre…
O amor é que não se detém ante nenhum obstáculo,
e pode mesmo existir até quando não se é livre.
E no entanto ele é em si mesmo
a expressão mais elevada do que houver de mais livre
em todas as gamas do humano sentimento.
É preciso não ter medo,
é preciso ter a coragem de dizer.

 

Carlos Marighella

Deixa-me ir
Embora do teu centro
Onde eu souber existir

 

Deixa-me ir
Onde eu não sei andar a sós
Poder viver
Da minha voz
Se incendeia é bem melhor
Que ter ideia do que é amar
Relatado a negro

 

No meu passeio eu vi
Gente a andar a pé
Os que vão primeiro ser
No que ainda não é
Não sei pintar
Amor sem ser da
Cor que enche tudo

 

Deixa-me ir
Embora do teu centro
Onde eu puder existir
Ser mais do que eu sinto

 

Deixa-me ir
Se eu não sei andar a sós
Vou querer dizer
Com a minha voz
Se incendeia é hem melhor
Que ter a ideia do que é amar
Relatado a negro
No meu passeio eu vi
Gente a andar a pé
Os que vão primeiro ser
No que ainda não é
Não sei pintar amor
Só sei que cor
Que enche tudo

A cultura do estupro não é apenas um conceito abstracto usado no discurso feminista; pelo contrário, é uma das mais violentas e conspícuas manifestações do patriarcado vigente e, ao que tudo indica, é a norma que prevalece na sociedade portuguesa, que oportunamente, se vê a braços com um momento de depuração mais do que de clivagem.


Provocando, apesar de tudo, choque e indignação suficientes para que se tenham organizado manifestações de repúdio em vários pontos do país, o Tribunal da Relação do Porto continua a liderar, de alguma forma, uma espécie de vanguarda do serviço público reverso. O ano passado, o juíz Neto de Moura permitiu-se redigir um acórdão indigno e asqueroso, que trouxe inspiração bíblica para a justiça do século XXI, apontando o adultério como atenuante para a extrema violência de que foi alvo uma mulher a quem o ex-companheiro e o ex-amante decidiram raptar e agredir com uma moca com pregos, quais Neanderthais, bem como condenando moralmente a vítima pela humilhação do marido traído. Cito: “Ora, o adultério da mulher é um gravíssimo atentado à honra e dignidade do homem. Sociedades existem em que a mulher adúltera é alvo de lapidação até à morte. Na Bíblia, podemos ler que a mulher adúltera deve ser punida com a morte. Ainda não foi há muito tempo que a lei penal [de 1886] punia com uma pena pouco mais que simbólica o homem que, achando a sua mulher em adultério, nesse ato a matasse.


Ainda se aguarda o resultado do processo disciplinar instaurado aos dois signatários daquele acórdão e já este ano nova decisão do Tribunal da Relação do Porto mostra inequivocamente de que lado está a justiça burguesa em casos de estupro. Uma jovem foi violada por dois homens na casa-de-banho de um bar em Gaia enquanto estava inconsciente, mas os Tribunais decidiram que, não só não se teria tratado de violação (!), apesar de ter sido provado a existência de relações sexuais com penetração e ejaculação por parte de pelo menos um dos agressores, como ainda que os agressores não representam perigo para a sociedade e devem, portanto, cumprir apenas pena suspensa. Neste caso juntam-se agravantes como o presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP) ser co-signatário do acórdão que alega "um ambiente de sedução mútua" como atenuante para a ocorrência do crime, considerando que "a culpa dos arguidos se situa na mediania" e a "ilicitude é baixa".

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Na semana seguinte, vem a público uma investigação do Der Spiegel acerca do caso em que o craque futebolista Cristiano Ronaldo é acusado por uma mulher de a ter violado analmente. A mulher, uma professora chamada Kathryn Mayorga, fez queixa às autoridades no dia seguinte, foram documentadas lacerações e hematomas no seu corpo e foi posteriormente assinado um acordo de confidencialidade, em que recebeu uma verba para não revelar a identidade de Ronaldo. Curiosamente, daquelas coincidências que acontecem tantas vezes quando pessoas com muito dinheiro estão envolvidas, parece que a roupa que Kathryn usava aquando da ocorrência e que fora entregue à polícia como prova, bem como o seu depoimento original, desapareceram


A presunção de inocência é, obviamente, devida, e é aos tribunais que cumpre julgar as acusações, por muito pouca fé que depositemos na justiça. Mas aquilo a que se assiste em quase toda a sociedade está no extremo oposto, que é, além da defesa acérrima da suposta inocência do herói nacional, a culpabilização da alegada vítima, o desdém pelos eventuais danos sofridos e uma espécie de contra-ataque, apontando o dedo a um suposto oportunismo por ter sido aceite uma verba mediante um acordo.


Cultura do estupro é precisamente esta tradução da misoginia por entre homens e mulheres na sociedade civil e pelos órgãos soberanos; os casos supra-citados são apenas três exemplos evidentes e bem conhecidos por todos daquilo que se passa, em menor (menos mediática) escala, todos os dias, nas ruas, nas escolas, nas empresas, nos tribunais, nas nossas casas.


Cultura do estupro é assumir que é expectável que uma mulher que saia para se divertir e dançar numa discoteca seja um alvo fácil para violadores. É assumir que os violadores são apenas homens decentes, “bem integrados na sociedade e na vida familiar” que agiram comandados por impulsos sexuais. É assumir que os criminosos não têm de ter discernimento para controlar a sua conduta, mas que são as potenciais vítimas que devem comportar-se de forma a evitar suscitar os impulsos dos violadores. É assumir que o consumo de bebidas alcoólicas serve para atenuar o comportamento dos violadores ao mesmo tempo que serve para culpabilizar a vítima. É assumir que é natural que uma mulher desmaiada na casa-de-banho seja vista, não enquanto pessoa que necessita de cuidados médicos que salvaguardem a sua integridade física, mas como um corpo à disposição para o usufruto de quem quiser. É considerar natural que os homens que conversaram com esta mulher e lhe pagaram bebidas se sintam no direito de fazer do corpo inerte dela o seu recreio, que se pode bater com violência suficiente para causar hematomas vários, que se pode apalpar, que se pode penetrar com preservativo, que se pode penetrar sem preservativo, em que se pode ejacular. É dar estes factos como provados em tribunal e afirmar-se, ao contrário do descrito na lei (que foi alterada em 2015), que não houve violação, mas antes “abuso sexual de pessoa incapaz de resistência". É a sentença ser fruto de todos os possíveis atenuantes para os criminosos e de rigorosamente nenhum agravante a pesar na decisão (nem o facto de os violadores serem funcionários no local do crime, nem a coordenação entre eles, nem a ausência de arrependimento). É tornar quase irrelevante um crime que tem repercussões traumáticas e potencialmente insuperáveis para a vítima. É saber que enquanto um dos funcionários da discoteca em questão "se servia" do corpo de uma mulher indefesa o outro estava ausente e, em coordenação com o primeiro, a esperar a sua vez para também usufruir do mesmo "direito" e ainda assim decidir que o crime foi fortuito e sem premeditação. É desconsiderar a violência do não socorro a uma pessoa desmaiada, a violência que provocou múltiplos hematomas, a violência da inexistência de consentimento, a violência da exposição a uma gravidez indesejada e fruto de estupro, a violência da exposição a inúmeras doenças sexualmente transmissíveis, a violência do trauma potencialmente permanente e devastador imposto à vítima. É a permissividade da pena suspensa para que estes criminosos, considerados culpados, permaneçam em liberdade e possam reincidir neste crime, que não foi considerado grave o suficiente para que os seus autores estejam a cumprir pena efectiva. É com este exemplo apaziguar todos os violadores que permanecem em liberdade, e incentivar outros potenciais violadores, desprezando o impacto dos seus crimes. É normalizar, não punindo com prisão efectiva, dois homens que tiveram relações sexuais não consentidas com uma mulher desmaiada na casa-de-banho do local de trabalho dos violadores. É culpabilizar a vítima, atribuindo a uma suposta “sedução mútua” a ideia de que a expressa vontade da mulher não tem importância, tão pouco a sua consciência aquando dos actos sexuais. Esta projecção da ideia de mulher como um objecto a serviço dos impulsos e desejos masculinos está presente, transversalmente, em toda a sociedade. Da mesma forma, o desejo e prazer sexual das mulheres é algo secundário, como confirma um outro acórdão da justica patriarcal: "aos 50 anos, a actividade sexual não tem a importância que assume em idades mais jovens" e "à medida que a idade avança, a importância do sexo vai diminuindo". Cultura do estupro é também naturalizar o medo incutido desde que somos meninas de andar sozinhas à noite, de expôr o corpo com roupas curtas, decotadas ou justas, de irmos onde quisermos, quando quisermos e com quem quisermos porque assumimos que somos presas que têm de se acautelar contra os predadores. Cultura do estupro é ver a esmagadora maioria da sociedade portuguesa (nomeadamente as "feministas" liberais brancas e burguesas, o Presidente da República e o Primeiro-ministro) a sair em defesa do seu herói nacional, homem cis, branco, poderoso e milionário, quando ninguém sabe ao certo o que se terá passado naquele quarto de hotel em Las Vegas e é ver essa mesma maioria sem qualquer pudor de fazer um linchamento público sobre a alegada vítima, acusando-a de oportunismo.


Neste país em que o número de mulheres assassinadas em contextos de violência doméstica, às mãos de companheiros e ex-companheiros, aumenta ao invés de diminuir, em que a violação é o único crime violento que regista aumento, em que a esposa espancada após uma derrota do clube de futebol do marido faz parte do anedotário nacional, em que a discrepância salarial representa, em média, 58 dias de trabalho sem salário para as mulheres, em que a discriminação de género continua a não ser levada a sério sequer pela franja política que se diz dedicar a lutar pela igualdade,
vigora a cultura do estupro sim. Vigora um paternalismo medieval que reproduz e reforça o desequilíbrio de poderes entre géneros. Vigora a forma refinada de capitalismo em que os pobres, oprimidos e silenciados favorecem o patrão e sobrepõem o poder do dinheiro a qualquer valor ou integridade. Vigora a moral acusatória do dedo apontado, sem hesitação, à vítima, porque vestida daquele jeito, a beber daquele jeito, a dançar daquele jeito, a sair sozinha à noite, a ousar querer ser uma pessoa de plenos direitos, “estava a pedi-las”.


Não pode ser aceitável, não pode ser nada menos do que gritantemente chocante, que com a maior naturalidade se atire a palavra "puta" como uma condenação a uma vítima de violação ou violência sexual. Ela é uma puta porque foi dançar, é uma puta porque bebeu, é uma puta porque usa mini-saia, é uma puta porque traiu o marido ou namorado. É uma puta, logo, estava a pedi-las. Pôs-se a jeito. Mas um homem que faça exactamente o mesmo é só um homem a ser homem. Ele, o que a perseguiu, o que a intimidou, o que a tentou comprar, o que a silenciou, o que a descredibilizou, o que lhe bateu, o que a espancou com uma moca com pregos, o que a regou com gasolina e lhe pegou fogo, esse é só, na pior das hipóteses, um filho da puta. E é, demasiadas vezes, só um homem a ser homem, a fazer o que se espera dele.


Os responsáveis somos todos nós, que permitimos que a misoginia esteja tão imbuída e normalizada. Estamos, colectivamente, a promover a cultura do estupro e somos muito culpados. De cada vez que juízes machistas deixam violadores em pena suspensa, estão a dar o seu aval para que estes continuem a violar impunemente e a transmitir a outros potenciais violadores que violar não é um crime assim tão grave, que se tiverem emprego e família mas beberem uns copos estão perdoados. De cada vez que se culpa e enxovalha uma vítima de violação, com mais ou menos eufemismos para dizer que "estava a pedi-las", diz-se a milhares de outras vítimas que o melhor para elas é não denunciar, sofrer em silêncio, sozinhas, e que foram alvo de um crime hediondo porque, no fundo, mereceram. De cada vez que corre uma corrente virtual para "as mulheres demonstrarem o seu apoio a Cristiano Ronaldo" está a dizer-se que os homens brancos, famosos, ricos e com bom ar serão sempre inocentes ou perdoados e que valem mais do que qualquer mulher. De cada vez que se chama puta a uma mulher que vai dançar ou que usa um vestido curto está a dizer-se que o corpo da mulher é pecaminoso e deve ser coberto, porque o desejo sexual dos homens é perigoso, incontrolável, e não deve ser atiçado, porque não são os homens que devem controlar os seus impulsos, são as putas das mulheres que não devem tentá-los. De cada vez que se chama oportunista a quem tem a coragem de enfrentar o mundo para denunciar uma ofensa sexual por parte de um homem poderoso está a dizer-se que o dinheiro vale mais do que a integridade física e emocional. De cada vez que um homem diz "ela disse que não mas não se mostrou indisponível" está a dizer que se acha no direito de abusar sexualmente de quem quiser e que a responsabilidade de o evitar é da vítima, ainda que, como quase sempre, do lado mais fraco da relação de poder ou da força física. De cada vez que alguém faz uma piada (de péssimo gosto) a dizer que por trezentos mil euros não se importava de ser violado(a) está a ser ignorante e cruel e a dizer que o dinheiro isenta qualquer crime. Tudo isto é reforçar a opressão, a misoginia e o machismo. Tudo isto são golpes duros na luta pela igualdade.

 

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Quando digo que o momento é mais de depuração do que de clivagem, o que significa é que assumo a derrota. Significa que quando vejo tantas pessoas que em outras situações lutam pela igualdade entre todas as pessoas, e que até se afirmam como aliados do feminismo a vociferar autênticas barbaridades, na senda do "até pode ter sido violada, mas (...)", não estamos a conseguir passar claramente a mensagem. E a mensagem é que NÃO É SEMPRE NÃO. Sexo sem consentimento é crime. É violação, ponto final. Significa que o que é óbvio, que estes discursos reflectem a cultura do estupro e a reforçam, não é reconhecido. Significa que muitos dos supostos aliados na causa da igualdade são também parte do problema.


Num país (e num mundo) em que é aceitável pensar que o dinheiro compra tudo, até a compensação por uma violação, o feminismo interseccional tem de ser objectivamente repensado, à luz da luta de classes e vice-versa, assumindo uma derrota estrondosa que force a uma estratégia concertada, ou pelo menos a uma estratégia diferente. O que temos nós, feministas, de fazer para evidenciar e derrubar a misoginia crescente patrocinada pela impunidade legal (talvez o mais forte reduto patriarcal), pela opinião pública, pela inacção política? Como podemos converter agentes perpetuadores da opressão machista, sobretudo nestes tempos perigosíssimos de crescimento e disseminação da extrema direita no mundo? Quem tem a coragem política de pegar nestes temas e os incluir activamente como prioridades nos seus programas de governo, com propostas legislativas e com acções? Quem tem a audácia de convocar uma Greve Geral de Mulheres? Quantas mais de nós, mulheres, terão de ser assassinadas, violadas, espancadas, culpadas e enxovalhadas perante a santa inquisição da moral podre burguesa para se perceber que estamos perante um problema inadiável de direitos humanos?

 

Portugal é um país racista.

Incrivelmente, esta verdade é rejeitada por muita gente que provavelmente perpetua a discriminação racial, intencionalmente ou não.

O racismo está presente transversalmente, em todas as áreas da sociedade: na representatividade política, na acção policial, na comunicação social, no acesso à habitação, à saúde e à educação, nas escolas, nos tribunais, na disputa do espaço público, no acesso ao emprego, na cultura, nas conversas de café e no seio da esmagadora maioria das famílias.

Os exemplos são, tristemente, abundantes e mesmo desnecessários para qualquer pessoa que esteja atenta ao mundo em que vive. Como aparentemente há muita gente desatenta, façamos então um brevíssimo resumo.

O período colonial é retratado nos livros escolares e nas obras de historiadores com um distanciamento aflitivo do que foi a realidade, em que Portugal é apontado como um “bom colonizador” (conceito incompreensível) e em que todas as vítimas dos mais atrozes crimes (assassinatos, estupros, tortura e violência sob todas as formas) são, pura e simplesmente, omitidas.

O direito à cidadania para quem nasce em Portugal ainda não está assegurado, graças a uma Assembleia da República que reproduz as opressões, mesmo nas bancadas que dizem defender a igualdade e os direitos das minorias. Já o presidente Marcelo Rebelo de Sousa, que falou na sua campanha do direito à nacionalidade, manteve-se estranhamente calado sobre o tema quando este chegou à votação na A.R.

Os casos de brutalidade policial serão bem mais do que os que vêm a público (o caso da esquadra de Alfragide será o mais mediático) e é fácil perceber que as vítimas do comportamento abusivo e injustificado por parte dos senhores “agentes da autoridade” que defendem um Estado burguês e racista são, maioritariamente, não-brancos.

No passado dia 15 deu-se a Mobilização Nacional Contra o Racismo. Em Lisboa, o evento estava agendado e devidamente autorizado desde há muito, para o Largo de São Domingos, onde foi montado um palco para receber várias intervenções de entre as 60 associações e organizações que colocaram o protesto de pé, música, poesia e outras expressões culturais unidas para dar visibilidade à luta anti-racista e contra a brutalidade policial racista. O primeiro facto digno de nota foi a ausência das televisões, nomeadamente a pública. O dever de informar acerca da actualidade política e social parece ter feito gazeta neste dia. Depois, deu-se um momento, no mínimo, caricato. A organização informou que os espectáculos previstos e agendados teriam de ser interrompidos pelo período aproximado de uma hora, para que o grupo musical Clã, que mais tarde actuaria na varanda do Teatro Nacional D. Maria II no âmbito de um espectáculo promovido pela EGEAC (Empresa de Gestão de Equipamentos e Animação Cultural de Lisboa), mesmo em frente ao palco do Largo de São Domingos, fizesse um sound-check. O ensaio dos Clã foi, naturalmente, recebido com apupos e careceu de uma mensagem (tardia) da vocalista Manuela Azevedo, bem como de um elemento da organização do protesto para apelar à paciência dos participantes. É óbvio que esta situação podia e devia ter sido evitada com algum planeamento e sobretudo, respeito pela luta contra o racismo. Igualmente flagrante foi a desmobilização em alguma medida de quem foi até ao Largo de São Domingos para engrossar a Mobilização Nacional. Não vi referência a este incidente nas publicações que noticiaram a iniciativa, que bem exemplifica que em coisas tão simples como o usufruto do espaço público, dentro dos trâmites legais e burocráticos, seja para algumas franjas da sociedade tão facilmente secundarizado. Fica a dúvida sobre a intencionalidade desta infeliz interrupção.

O facto é que, desde uma pronunciada ausência de pessoas não brancas nas bancadas parlamentares, nos noticiários, na publicidade, até à perseguição de comunidades inteiras por nenhum outro motivo que a sua etnia ou cor da pele, ou à proliferação impune de grupos de extrema-direita, o racismo existe em todo o lado e toda a gente parece conviver bem com ele.

Olhemos em redor nos locais de trabalho das grandes multinacionais, e atentemos depois em qualquer sítio de construção civil.

Quem permite que o racismo subsista na sociedade é seu cúmplice. Sim, eu e cada um dos que me lê também. Por muito que não nos consideremos racistas e sejamos até parte activa da luta anti-racista, quantas vezes não ignoramos uma ou outra piadola sobre “pretos” ou “ciganos” porque achamos que é inócua, que não foi dita com má intenção, porque é mais fácil não dar importância e não entrar em discussões e quezílias? A responsabilidade é de todos: os que atacam, os que perpetuam, os que não educam e os que permitem.

Fingir que Portugal não é um país racista é mais do que tapar o Sol com a peneira, é desvalorizar todas as situações de racismo que presenciamos, é calar as vítimas, é continuar a permitir que seja normal que uma pessoa seja agredida em plena via pública por um segurança ao serviço da STCP e que, mesmo chamando as autoridades policiais, o assunto seja esquecido até a indignação rebentar e escalar nas redes sociais.

O racismo tem de ser erradicado, ponto! Não basta ser criminalizado, se a denúncia é escassa e difícil, se as condenações nos raríssimos casos que chegam aos tribunais não vão além de coimas. O racismo tem de ser punido como o ataque vil aos direitos humanos que é, tem de ser apontado, evidenciado, enxovalhado e derrotado. Nada menos é aceitável.

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Para encerrar Agosto e celebrar o final oficial da silly season e a rentrée política*, recomendo vivamente o blogue Porto de Amato, que já consta ali da selecta lista de links à direita (salvo seja, que neste porto de abrigo está-se do lado certo).

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*Cada vez me parece menos que a silly season alguma vez tenha descanso ou abrandamento, a julgar pelas pérolas que me assolam a televisão em horário nobre. Da mesma forma, também me parece que a política a sério é uma prática em vias de extinção, ninguém debate política, ninguém questiona ideologias ou faz reflexões sérias sobre o estado das coisas e os objectivos de cada actor global. Revolução é palavra em desuso até da suposta esquerda. Restam-nos as ideias e conversas entre grupos marginais, em blogues ou redes sociais fechadas sobre si mesmas. Outra vez batatas.

Finalmente, devendo já boas décadas à cova, finou-se um dos mais asquerosos senadores norte-americanos de sempre, e os títulos das 'notícias' nacionais são isto: menções à "coragem" e ao "serviço" dos EUA. Eu até acho que o Vietname fez bem em devolvê-lo à sua pátria no fim da guerra. Só que devia tê-lo devolvido em vários pedaços.

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Um bom fascista é um fascista morto.

 

Eu nem ia dizer nada sobre o caso Robles, porque me pareceu à primeira vista uma situação simples de hipocrisia e conflito de interesses, que só surpreenderia os mais distraídos, os que sofrem de ausência de criticismo ou os que acreditam no Pai Natal. Achei que o vereador se encolheria num canto, teria vergonha na cara, pediria a demissão e o BE rapidamente se demarcasse das suas acções diametralmente contrárias ao plano político que o partido diz defender. Afinal não foi assim tão simples, como se pode ver pelas constrangedoras tentativas de defesa do indefensável, metendo os pés pelas mãos e ao largo (muito ao largo) da política. Surpreendi-me eu com a falta de pulso do BE (não com a falta de espinha dorsal de Robles, que já tinha demonstrado enquanto vereador exactamente ao que vinha e de que matéria é feito) e sobretudo com as justificações em jeito de claque que se fizeram sentir por grande parte dos militantes e eleitores do Bloco de Esquerda.

Títulos sensacionalistas à parte, os factos são incontestáveis e o próprio Ricardo Robles não nega: adquiriu um imóvel numa zona onde a forte pressão imobiliária já se fazia sentir na altura (2014), por 347 mil euros, reabilitou (com recurso a um empréstimo bancário no valor de quase 70% dos rendimentos brutos que declara), foi a tribunal por causa da indemnização miserável que ofereceu a um dos inquilinos e colocou o imóvel à venda por um valor muito, muito superior de 5,7 milhões de euros, com o propósito de exploração para alojamento local. O imóvel não foi ainda vendido, mas especulação não é só a concretização de vendas a valor exagerado. É também a pressão sobre o mercado, criando um valor falso de que outros beneficiam. O post do Luís Vicente explica melhor do que eu saberia.

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Não há como dar a volta ao argumento: Robles entrou no negócio que diz querer combater de forma prioritária. A melhor defesa dele é que não fez nada de ilegal e a mana o obrigou? O mesmo Ricardo Robles que tem como primeira mensagem política “mudar a lei, combater a especulação”?! O mesmo Robles que aparece no Rock in Riot (como em todas as outras manifestações com cobertura mediática, aliás) a apregoar a defesa dos moradores lisboetas e contra a especulação imobiliária e a gentrificação?! A sério que isto serve para meio Bloco isentar de responsabilidade política um vereador municipal?! Como a hipocrisia e incoerência não são ilegais, a vergonha na cara também é dispensável?

Coisas engraçadas para reflectir sobre hipocrisia e aproveitamento político:

  • o PSD critica a especulação imobiliária e pede a demissão de Robles (e pelo caminho ironiza, elogiando as suas qualidades empresariais);

  • nazis okupas - o PNR promove o evento “vamos ocupar o prédio do Robles”! E a “esquerda radical”, fica-se? (Na verdade, o PNR também já tinha criticado a agressão ao casal homossexual em coimbra, colocando a perna racista em frente à perna homofóbica, o que não deixa de me preocupar, porque parece que cresceu um neurónio ao José Pinto Coelho.)

  • o principal argumento de defesa do BE e dos bloqueiros acríticos é puro legalismo. “Ele não fez nada de ilegal.” É certo que não. E se fosse Assunção Cristas a fazer exactamente o mesmo, também a defenderiam com o mesmo argumento (apesar de Cristas jamais usar como slogan político “combater a especulação”)? Não há pingo de consciência ideológica ou um pequenino vislumbre de pensamento revolucionário? Sabem o que é que também é legal? A exploração do proletariado, o trabalho precário, os presos políticos da Catalunha, a tourada. Também foi legal a escravatura, o apartheid, a criminalização do aborto. Robles não fez nada de ilegal, mas fez algo de muito criticável, hipócrita e que lesa os interesses daqueles que é pago para defender. 

  • Se todos faríamos o mesmo no lugar de Robles? A maior parte de nós sim, faríamos. Outros de nós não, jamais o faríamos. E importa frisar que a maior parte de nós não acumula o privilégio de poder comprar um imóvel de 347 mil euros numa zona nobre da capital e o privilégio de ser vereador municipal da Educação e Direitos Sociais, eleito por um partido que se diz de esquerda.

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Fico com algumas preocupações políticas à conta de toda esta salganhada. À cabeça, a descredibilização da esquerda; não que alguma vez depositasse grandes créditos no Bloco de Esquerda, mas em alguns militantes que são pessoas de esquerda, de trabalho, honestidade e índole revolucionária. Vê-los a defender publicamente a postura de Robles sem qualquer argumento, mas antes com chavões que colam a crítica da hipocrisia ao “jogo da direita” e ao moralismo e legalismo, o que se traduz numa triste mistura de relações pessoais com estratégia política, vulgo compadrio, faz-me ver os restantes cada vez mais raros, mais isolados e sem capacidade organizativa. Para completar o quadro, falta ver o BE fazer outra purga dos seus elementos arraçados de revolucionários. Preocupa-me também o reducionismo de questões realmente importantes, como a da especulação imobiliária e gentrificação, ou as touradas, ou a eutanásia, a quezílias entre as esquerdas parlamentares, que em vez de darem espaço fiável ao debate sério vão relegando para segundo plano e considerando qualquer argumento como uma mera luta de galos do mesmo lado da arena. É que também aí a esquerda vai cedendo espaço à direita.

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Este blogue repudia veementemente o Acordo Ortográfico.
Neste blogue não se faz corridas. Nem passatempos. Nem giveaways (que são a mesma coisa que os passatempos com um nome mais snob). Neste blogue não se mostram outfits ou detalhes (também conhecidos por trapinhos ou fatiotas). Também não se mostram fotografias da blogger (até para protecção ocular dos leitores). Este blogue pode ser tudo menos politicamente neutro e está em permanente campanha eleitoral pela oposição de esquerda, que deixou de existir no Parlamento. Mesmo quando se fala de outra coisa qualquer, porque tudo é política, até o Amor. Neste blogue normalmente não se fala de clubes nem de futebol porque é tema que me entedia enormemente - a não ser que seja para arreliar lampiões. Neste blogue não há bebés nem animais de estimação. Não há demagogia, não há juízos de valor nem lições de moral.

Neste blogue o que há são gritos, desabafos, opiniões, suspiros, alegrias, música, poesia, há flashes do quotidiano de uma pessoa banal e seus encontros e desencontros com pessoas especiais. Há pedaços de insignificâncias e dissertações de suma importância. Há rajadas de raivas e paixões, fragmentos de vidas reais cobertos de palavras tecidas em mantos frugais.

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Saúde das Pessoas Trans, Autodeterminação e Respeito – Medicina sem Preconceito | MANIFESTO 2018

Passados 7 anos da implementação da lei que criou o procedimento de mudança de sexo e nome próprio no registo civil, foi aprovada, em Parlamento, uma lei que garante a autodeterminação de género legal. Porém, com o veto do Presidente da República, tememos que estas garantias não nos sejam dadas num futuro próximo. Continuamos a marchar para que a autodeterminação seja um direito consagrado para todas as pessoas. Para que as pessoas intersexo vejam os seus corpos protegidos. Para que todas as pessoas tenham direito à autonomia do seu corpo.

Yo tuve un hermano - Julio Cortázar
 

(Al Che Guevara)

No nos vimos nunca
pero no importaba.
Yo tuve un hermano
que iba por los montes
mientras yo dormía.
Lo quise a mi modo,
le tomé su voz
libre como el agua,
caminé de a ratos
cerca de su sombra.
 
No nos vimos nunca
pero no importaba,
mi hermano despierto
mientras yo dormía,
mi hermano mostrándome
detrás de la noche
su estrella elegida.
 

 

Baía de Guanabara
Santa Cruz na fortaleza
Está preso Alípio de Freitas
Homem de grande firmeza

Em Maio de mil setenta
Numa casa clandestina
Com campanheira e a filha
Caiu nas garras da CIA

Diz Alípio à nossa gente:
"Quero que saibam aí
Que no Brasil já morreram
Na tortura mais de mil

Ao lado dos explorados
No combate à opressão
Não me importa que me matem
Outros amigos virão"

Lá no sertão nordestino
Terra de tanta pobreza
Com Francisco Julião
Forma as ligas camponesas

Na prisão de Tiradentes
Depois da greve da fome
Em mais de cinco masmorras
Não há tortura que o dome

Fascistas da mesma igualha
(Ao tempo Carlos Lacerda)
Sabei que o povo não falha
Seja aqui ou outra terra

Em Santa Cruz há um monstro
(Só não vê quem não tem vista
Deu sete voltas à terra
Chamaram-lhe imperialista

Baía da Guanabara
Santa Cruz na fortaleza
Está preso Alípio de Freitas
Homem de grande firmeza

Pouco há a dizer sobre o nacionalismo do "dia da raça", ou seja, a celebração do colonialismo racista e fascista:
1 - Alcindo Monteiro teria hoje 50 anos. Foi brutalmente assassinado num hediondo crime de ódio há 23, devido à cor da sua pele.
2 - Há 40 anos, era assassinado José Jorge Morais e Jorge Falcato ficava paraplégico, numa contra-manifestação anti-fascista, quando a polícia defendia os neo-nazis.
 
 
 
 
 
Safa-se, apenas e só, o Camões.

 

Amor é um Fogo que Arde sem se Ver

Amor é um fogo que arde sem se ver; 
É ferida que dói, e não se sente; 
É um contentamento descontente; 
É dor que desatina sem doer. 

É um não querer mais que bem querer; 
É um andar solitário entre a gente; 
É nunca contentar-se e contente; 
É um cuidar que ganha em se perder; 

É querer estar preso por vontade; 
É servir a quem vence, o vencedor; 
É ter com quem nos mata, lealdade. 

Mas como causar pode seu favor 
Nos corações humanos amizade, 
Se tão contrário a si é o mesmo Amor? 

Luís Vaz de Camões, in "Sonetos"