Os beijos saem por instinto, a qualquer momento, aonde te chego: cotovelo, ombro, costas, queixo. Quase em névoa de sonho, puxada de repente do sono pela tua mão quente a afagar a perna fria que deixaste descoberta quando roubaste o lençol, o que nos cobre carinhos e ternuras, quase sai em jeito de suspiro um "meu amor". Ousadia proibida, essa de assumir que a mão cheia de nada que é o que existe podia ser uma mão cheia de tudo. São intervalos por cima dos telhados, excepções que devolvem o sentido ao que é irracional. Brechas em estrondo na normalidade pálida que se cimentou. A tentação de dinamitar tudo para evitar uma morte triste e murcha seduz. Uma enorme explosão é sempre mais poética do que um definhar lento e sofrido. Com fogo e luzes, isto que é nada até parece ser alguma coisa a ser sugada com avidez pelas chamas, até parece que havia pilares e coisas frágeis que se partem em grande estardalhaço. No lugar de cinzas vão ficar planos para os quais nunca houve tempo, mais umas páginas rasgadas do teu caderno e a culpa da revolução falhada uma vez mais.
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Magnetismo inevitável, talvez. Premonição, dificilmente. Mas um instinto aguçado, do qual duvidavam demasiadas vezes, dizia-lhes quase tudo o que precisavam saber. Ele captou-lhe os aromas de desafio na voz pequenina de veludo e chilreios; na talhada de verdades em betão, a promessa de transpor, de punho em riste, os seus muros e arames farpados para o encontrar do outro lado, inteiriço e solto, liberto no remoinho de que se vai cansando de ser. Ela cumprimentou-o com a familiaridade de quem galgou os séculos a seu lado, vendo-lhe tudo sem nunca o olhar, sem saber que cada um existia de verdade e na certeza estridente que é a dos argumentos de romances perfeitos que se colam à alma e a moldam, a definem como um destino. Ele soube que no seu colo de rola encaixavam os risos e os medos pendentes de permissão, que as suas tempestades, alvoroços e calmarias etéreas cabiam todos entre os braços e pernas tão caseiros daquela morena de olhos turvos, que lhe afagaria todos os gritos emaranhados nos cabelos e que ao sangue dela pertencia, líquido e solúvel por todo o corpo. Evitou os atalhos e disparou um arsenal de flechas ao epicentro do alvo, seguro e certeiro. Ela só estremeceu; fez algumas tentativas de expulsar as setas inquinadas do coração calejado, insistiu até se render à enormidade da cratera que a engolira inteira, de dentro para fora. O vestido remendado da vidente mística, guardadora de segredos e artesã de narrativas redondas, não resistia a cair num só sopro, gesto resoluto e acérrimo, perante o olhar encantado e as mãos gulosas daquele estranho que lhe nascera em rompante de cravos a florir no peito blindado, qual bomba atómica que arrasa os tempos do antes e do depois, semeia só poesia e beijos prometidos em mares chão. Ofegavam, ambos, tingidos por um desejo desastroso de escapar aos contornos castradores das dimensões reais e palpáveis, das impossibilidades que os continham quedos, mudos, agrilhoados.
Passaram duas vidas inteiras a fugir da palavra Amor, como verbo de amar em surdina contínua, como sentença em pena suspensa, como almas penadas a quem os paraísos de passear de mãos dadas e de abraços demorados estão interditos para a eternidade. Depois das fugas com pés descalços nas rochas escarpadas de lâminas cruéis ou nas areias escaldantes dos mais áridos desertos, pulavam para tapetes de bonança e aconchegavam-se com cobertas de ternura e mantos de promessas de nunca mais.
Não conseguiam evadir-se juntos para a terra dos sonhos, cativos que estavam de galáxias apartadas e unidas pelo éter em que se soltavam nomes como âncoras definitivas, pesadas, graves. Boiaram numa jangada imaginária, à tona do mundo, com sonhos por leme, até serem despedaçados por procelas e tormentas grotescas, ignescentes distâncias e ausências.
As palavras às vezes feriam como relâmpagos arremessados contra o casulo de aço e gelo em que ele se encolhia, impotentes mas ruidosas, ecos dos enigmas que ele largava em molduras ferrugentas de paisagens oníricas nunca palpáveis. Ela enlouquecia e arfava de dor com as reticências passivas e os silêncios que lhe lia nos olhos, os beijos retidos, só desenhados no ar. Uma vez achou-se perdida no sorriso de luz que crepitava no lado oposto da sala e sentiu-se a queimar, dissipada, prostrada em cinzas. Terminou naquele instante a sua liberdade de ser outro alguém, de emergir noutra pele renovada, de aprender a viver de outra forma que não nas palavras que ficaram sempre por dizer.
Ouviram as mesmas canções no ombro um do outro até serem consumidos pelo tempo e pela erosão da finitude. Exorcizaram as distâncias soluçadas em sílabas a gotejar em par e permaneceram enleados de verbos e adjectivos, sempre parcos, insuficientes até para delinear os contornos mais desmaiados de um Amor desfocado, a dois tempos, duas faces umbilicais e contrárias da mesma lua destemida e desfigurada. Cumprindo a profecia, permaneceram até ao fim dos dias unidos, um dentro do outro, e isolados, separados pela vida.
A simplicidade do som da chuva a cair ritmada no quintal para dizer "bom dia" diz mais do que mil textos, promessas, planos idílicos para que nunca se mexeu uma palha que os fizesse concretizar. Só um sorriso e um cão. Assim, simples, honesto, como quem abre escancarada a janela de casa para que possas espreitar, entrar pela porta se quiseres. Sem mentiras, subterfúgios, juras ou desvios.
É, as relações humanas deviam ser menos idealizadas e mais analisadas sob a luz do materialismo. Sobretudo, simplificadas. Triadas sob o jugo fácil de quem nos faz bem, ou não.
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Não tinha falsas modéstias, sabia que tinha uma cabeça interessante, um discurso cativante, rebelde e uma dose de poesia na alma que, nas raras ocasiões em que a revelava, não colhia indiferença.
Bicho-do-mato, arisca, bruta, conseguia afastar qualquer um antes de dar a hipótese de ser rejeitada. Não concebia que pudesse ser mais a outros olhos do que era aos seus próprios e sacudia com força quem ousasse aproximar-se. Quem não toca não magoa e esse parecia ser o segredo para não morrer de amor. Não se reconhecia na imagem que devolvia o espelho, que evitava olhar de frente. As formas flácidas, as curvas esmorecidas, papos, borbulhas e cicatrizes atacavam de frente a miúda atrevida que queria ser, chamando a atenção de que afinal o tempo de ser miúda já passou e o atrevimento podia ser ridículo. Voltava costas e tentava esquecer-se do reflexo que lhe tolhia as ousadias. Todos os dias odiava as suas contradições, enquanto ia aprendendo a amar-se. Queria mudar o mundo, mas não cabia nos moldes mundanos. Todos os dias corria atrás de um ideal que não sabia definir. Queria ser especial mas para ser invisível era preciso ser banal. Apontava as fugas de toda a gente, incapaz de se deter e se despir. Gabava-se de não temer nada mas soluçava o choro seco de quem lamenta existir. Queria ser leve, simples, fácil, mas era um vendaval surreal.
Sofia apagou-se um dia, com o coração em remendos e a alma em cacos.
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Na internet, entenda-se. Há algum tempo atrás, eu era uma autêntica carmelita das redes sociais - só aceitava ligações de algumas pessoas conhecidas e mesmo estas só tinham permissões para aceder ao quase nada que disponibilizava. O anonimato no mundo dos blogs era absolutamente sagrado e apesar de ser utilizadora de um ou outro dating site/app, deixava quase tudo por revelar. Destes pontos ainda não abri mão nem sequer ponderei o assunto, até porque o anonimato me permite liberdades que de outra forma não poderia recuperar.
Há uns anos, vieram insólitas histórias de amor, desamor e amizade e deixei de ser tão picuinhas. Ocasionalmente, passei a aceitar pedidos de ligação de pessoas que não conhecia mas tinham amigos e interesses em comum comigo, ou no caso de redes profissionais, interesses próximos. O conceito foi-se tornando cada vez mais flexível, passei a aceitar literalmente toda a gente no Linkedin (surgiram ali propostas de emprego deveras interessantes, sem outra indicação além da própria rede e mudei de emprego graças a uma destas ocasiões).
No meu Facebook pessoal (não o do blogue), que cheguei a desdenhar e estava mesmo quase a desactivar a conta, mudei o paradigma. Utilizo sobretudo para ter acesso a informação e divulgação dos temas que me interessam (com ênfase na vertente política), faço parte de alguns grupos internacionais de apoio e partilha de experiências (que são francamente úteis para receber e dar apoio a pessoas que tenham gostos/necessidades/situações semelhantes), para debater ideias e para descontrair um bocado com amigos - virtuais e não só - em qualquer canto do mundo.
Continuo a ser muito ciosa da minha privacidade e a ter comportamentos que porventura pecam por excesso de zelo: partilho muito poucos dados pessoais (nem o nome completo agora consta), muito menos locais de trabalho e localização, só partilho fotografias e outras informações mais sensíveis com grupos mais restritos, faço muito uso das listas de amigos para mais facilmente regular as definições de privacidade. Contudo, em termos de relacionamentos percebi que há pessoas que têm mesmo, inevitavelmente, de se encontrar. Não acredito, de todo, no destino, mas acredito nas leis das probabilidades. Seja mais cedo ou mais tarde, é incontornável que algumas pessoas um dia se aproximem, por tantos paralelismos ideológicos, políticos, artísticos e mesmo geográficos partilharem. Sobretudo quando se faz parte dos chamados "grupos marginais", minoritários, de contra-culturas. Estranho seria que pessoas que partilham tanto e num espaço relativamente pequeno passassem a vida toda sem se cruzar, ou que, cruzando-se nos mesmos sítios e eventos, deixassem de se partilhar umas com as outras por timidez ou falta de oportunidades.
Tendo tido experiências particularmente positivas ao longo – sobretudo – deste ano, em que alguns amigos virtuais passaram para o tridimensional e em grande, porque são pessoas mesmo porreiras, com quem me identifico muitíssimo e com quem me sinto desde sempre tão estranhamente confortável e à vontade para ter as conversas mais íntimas e profundas (acreditem que para mim que sou bicho-do-mato é mesmo muito raro isto acontecer), e outros que ainda não passaram para as três dimensões mas que já sabemos que há uma ligação muito forte e até bonita (hoje estou uma lamechas), concluo que em vez de adiar o que é inevitável e tão positivo teremos todos mais a ganhar com uma abertura mais descontraída de algumas portas. Assim sendo, nas redes sociais (sobretudo Facebook e Instagram) passei a ser uma verdadeira libertina. Aceito pedidos de amizade de quase toda a gente, faço pedidos de ligação a desconhecidos amiúde, tenho conversas e debates interessantes com malta que nunca vi e tenho aprendido coisas engraçadas sobre a natureza humana e muito mais.
No fundo, finalmente digo em relação às redes sociais aquilo que já digo há muito tempo em relação ao "online dating". Não há nenhum particular perigo à espreita se toda a gente estiver informada e essencialmente, a internet é apenas mais um sítio para as pessoas se encontrarem, é mais uma forma de estabelecer privacidades e empatias. É aproveitá-las. :)
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Caminhava como vivia, em contra-corrente, de peito feito e olhar obstinado, fixo no ponto onde as portas automáticas não descansavam, escancaradas, parindo em golfadas ritmadas dezenas de caras ténues, sem expressão, uma previsível mancha de corpos amorfos, transpirados, diluídos, que marchavam em círculo, sem princípio nem destino. Tinha a sensação de ter perdido o momento certo para o fazer e sabia até que se iludia novamente, mas a ambição era demasiado sedutora para não apostar todas as fichas naquele momento.
[Gostava de presentear-se com fugazes parênteses irreais em que podia ser quem gostaria de vir a ser, sem hesitações nem amarras. Logo a seguir, numa rajada, furava em penitência as palmas, num estouro rebentava os balões, reduzia a carvão tudo o que pudesse florescer de uma ou outra verdade caída no chão.]
Não se enganou, bastou um sorriso para João saber que chegara ao sítio onde desde sempre era esperado.
[Ali podia demorar-se a criar o excepcional, a apreciar o raro, a saltar por cima do impossível. Nunca tinha feito tanto sentido, nunca lhe parecera mais próximo do sonho do que naquele momento, na doce materialização daquela mulher.]
Ela parou e olhou-o, nervosa, com o sorriso a abrir-se numa espantosa confiança que sempre lhe era alheia, enquanto o peito se erodia em galáxias distantes que lhe fugiam ao entendimento. Reconheceu os prenúncios anunciados em flashes desde o primeiro momento; sabia que seria ali, nos braços daquele homem, o seu fim, a morte inevitável da personagem idealizada que quase tinha conseguido alcançar, e ali mesmo o seu começo, o insólito nascimento da mulher inquebrável que se desfez em cacos e passou a incendiar o ar só com as chamas das palavras.
Ele não se deteve. O olhar verde escuro, recto, mantinha-se cativo nas azeitonas sumarentas e risonhas que eram suas, a partir daquele instante e até ao fim dos dias. Continuou a avançar sem desvios e só travou quando os lábios todos se encontraram, sedentos, macios, sôfregos, nuvens doces, línguas molhadas e as mãos seguras onde pendurar todos os sonhos.
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Todos os dias me admiro com a percepção da realidade que têm algumas elites, distantes da vida real da maioria das pessoas comuns. E todos os dias confirmo que a classe que gere as empresas que nos vão pagando os salários de miséria e explorando tanto quanto puderem (e permitirmos), tal como uma porção significativa dos decisores políticos, vive numa espécie de realidade alternativa, numa “bolha” de alheamento da realidade óbvia. Os mais vividos podem saber exactamente quão canalhas são eem que medida afectam as vidas dos outros, mas lamentavelmente, uma grande parte está mesmo perfeitamente a Leste da realidade dos trabalhadores (isto sou eu a ser boazinha, a acreditar que em vez de má índole é “só” ignorância, e a tentar, não sem esforço, colocar de parte o meu preconceito contra os ricos - reparem que nem digo burgueses). A alienação é fruto, desde logo, de um condicionamento social que marca as classes. Não tendo uma extensíssima experiência no mercado empresarial, já passei por dois ou três sítios em que o enquadramento se repetia, e por tudo o que oiço e vejo, permito-me a liberdade de tecer algumas considerações generalistas.
Os chefões (administradores e directores) das grandes empresas do sector privado fazem parte de uma espécie de meio fechado, ou têm uma rede de contactos que partilham em grande medida. Quase todos parecem conhecer-se dos tempos dos liceus particulares, ou dos tempos das universidades também particulares, ou do meio social que se estende um pouco mais devido a laços familiares e de amizades. Depois, claro, há toda a componente política. São quase todos das mesmas áreas políticas (direita ou direita), ou militaram nas mesmas “jotas”.
Este condicionamento social de que falo é inseparável da educação, desde logo. (Se parecer que estou novamente a atacar o ensino privado é porque estou.) Numa escola ou colégio privados não entram jovens das camadas sociais mais “desfavorecidas”, ou traduzindo por miúdos, não há pobres. Não significa que nas escolas públicas não andem putos de classe média ou betinhos endinheirados, que também os há, mas nas privadas não há, naturalmente, vislumbre da classe operária. Isto significa que desde muito jovens, as crianças dos colégios privados não têm contacto com os operários em pé de igualdade, onde a aprendizagem e socialização são basilares para a construção da personalidade e do carácter. Não esfolar joelhos com os filhos dos operários fabris e das suas empregadas domésticas, e não fazer os mesmos testes que eles, podem bem contribuir para a criação ou perpetuação de preconceitos e mitos. Pior, a sua realidade fica indelevelmente carente, por omissão, das outras realidades.
O resultado é que esta fina burguesia que nunca respirou fora da bolha não faz a mais pálida ideia sobre o que é ser pobre. Lá terão umas ideias vagas e generalistas, provavelmente erradas, mas no concreto desconhecem a dureza dos dias, de todos os dias. Não fazem ideia de que as famílias que têm de se sustentar com um salário mínimo, ou um subsídio de desemprego (quando o há) também gostavam de jantar fora nos restaurantes da moda, só que nem sequer conseguem comer carne ou peixe todos os dias. Não se lembram que às vezes o dinheiro falta para coisas tão fundamentais e que tomam por garantidas como a água canalizada ou as taxas moderadoras no Centro de Saúde. Não concebem que mesmo um casal sem filhos e com dois salários mínimos a entrar para o orçamento tem de pagar casa, o que leva uma grande parte do rendimento, os transportes de e para o trabalho, a água, a electricidade, o gás, a comida, e no fim disto tudo pode não sobrar rigorosamente nada. Se um dos elementos do casal tiver um problema súbito de saúde, pode ter de se aguentar ou pedir dinheiro emprestado. O patrão/chefe não sabe o que isso é, porque nunca lhe aconteceu a si nem aos seus próximos. Nunca viu no supermercado um idoso a contar os trocos e a ter de deixar um saco com duas maçãs para trás porque o dinheiro não chegava para tudo. Este patrão acha que já não ter salário ao dia 5 é só desgoverno, que "as pessoas" não querem é trabalhar, são preguiçosas e querem é viver de subsídios, acham que "os transportes públicos que temos até nem são nada maus", acham que a "classe média" tem imóveis de 600 mil euros para cima, que os jovens são uns aventureiros que emigram pelo espírito empreendedor (e jamais por necessidade), que são frugais e escolhem alugar umas casinhas pequenas e ter filhos tarde.
Uma boa parte da falta de noção da realidade pela elite que decide a vida de todos nós passa pela falta de confronto. Se nunca ninguém disser umas verdades óbvias na cara desta gente, os burguesinhos da bolha continuarão com as suas certezas sobre esse conceito místico (para eles) do “povo”, continuarão a achar coisas e, recordo, a decidir sobre as nossas vidas com base nesses “achismos”.
Tem de se lhes rebentar a bolha!
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A repressão dos tempos modernos, no meu local de trabalho e por parte da minha chefia, faz-se assim, com toda a classe e inegável fineza (not!). Sempre que as conversas entre colegas são consideradas inoportunas (que é quase sempre que não envolva directamente a pessoa em questão), são soltos profundos suspiros. Quem não conhecesse a peça pensaria que era paixão assolapada, daquela que aperta o peito e faz suspirar.
Pior ainda é quando as conversas alheias tomam um rumo que desagrada, seja pelo seu teor político (nestes casos sou eu a culpada 90% das vezes), anti-religioso (hmmm, 90% das vezes também serei eu) ou críticas a decisões da empresa. Nestes casos surge um pesado catarro de fumador (estranho sintoma para quem nunca fumou), intencionalmente sobrepondo-se às demais vozes. Escusado será dizer que se o efeito pretendia ser apaziguar as conversas ou o seu tom, tem o efeito precisamente oposto, já que toda a gente nota a reacção estapafúrdia e torna-se por demais divertido observar estas cenas quase pavlovianas.
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Demasiado independentes, como já me acusaram de ser, como se fosse uma coisa má pensar pela própria cabeça e não esperar pelo aval de ninguém para fazer o que se decidiu fazer. Curiosamente, não me revejo nada nessa adjectivação. Até me sinto bastante dependente, com necessidade de que gostem de mim, dependente do amor de um homem (digo-lho amiúde que é uma doença, uma dependência irritante, e que é frustrante não conseguir deixar de gostar dele, mesmo quando me irrita e faz zangar a sério). Admito, contudo, que o que passa aos outros como independência e capacidade de suportar tudo sem apoios externos pode trazer outros problemas, nomeadamente nas relações amorosas. A outra parte vê-nos resolver coisas, tomar decisões e iniciativas, fazer mudanças, levar a cabo ideias peregrinas, muitas vezes só porque metemos isso na cabeça e não pedimos licença a ninguém para avançar. Desbravamos terreno, muitas vezes sozinhas, vamos buscar forças desconhecidas, superamos os obstáculos e nunca nos damos por vencidas. Aguentamos o barco quando os outros à nossa volta têm problemas, e toda a gente os tem. Acho que as mulheres portuguesas do século XXI têm quase todas um complexo de super-mulher. E os nossos parceiros vêem-nos ser super-mulheres, mesmo que também consigam ver as fraquezas - porque as fraquezas tentamos esconder, não damos parte de fracas, e só os argutos vão conseguir ver além do que julgamos permitir. Porque como super-mulheres não queremos falhar com ninguém e não queremos sobrecarregar os outros, que já têm os seus problemas, e por isso não nos queixamos. Nunca. Engolimos as dores, as frustrações, os anseios e inseguranças. Quando estamos mais fragilizadas, a capa endurece ainda mais e, por mim falo, as reacções podem ser desproporcionadas e injustas para quem está mais perto. (Além disso tudo ainda há toooooda a agravante hormonal e TPM, etc. e tal, que exacerba tudo 500 mil vezes.) Somos, portanto, qualquer coisa que se assemelha a bombas-relógio, passíveis de explodir com um breve tic-tac, uma coisa mínima. E seremos muitas vezes incompreendidas, porque - não se enganem - toda a aparente independência não implica desapego, não implica que não seja necessário dar carinho, atenção, ter a flexibilidade de perceber como é estar na nossa pele. Mesmo os cactos precisam de água.
[Posso ser casmurra como uma porta e só fazer aquilo que bem entendo, mas se peço uma opinião é porque me importa saber o que pensas. Posso repetir mil vezes que estava bastante feliz e em óptima companhia quando estava sozinha, mas se peço que me acompanhes é porque prefiro estar contigo.]
Podemos ser demasiado independentes, demasiado aventureiras, demasiado racionais, demasiado inteligentes (?). Os nossos parceiros podem sentir-se ameaçados por isso, se forem inseguros, ou não o compreenderem, ou sentirem a sua virilidade ameaçada (e os mais tolos tentarão conter ou suavizar-nos, se não forem parceiros à altura). Podemos achar que somos super-mulheres e temos de superar todas as (nossas) expectativas. Mas não nos esqueçamos de ser também, apenas, absoluta e exactamente quem somos. Não a 99% nem a 101%, mas plena e absolutamente quem somos. E isso começa por sermos humanas.
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Nos últimos anos, tenho dado por mim a gostar de alguma ficção televisiva que, à partida, diria que não me interessaria por aí além. Um exemplo imediato (entre outros): Walking Dead. Resisti bastante no início, das pequenas partes que já tinha visto lembro-me de achar inúmeras falhas no enredo e na caracterização dos zombies, por exemplo, mas perante a insistência do homem, lá tive de papar acedi a ver as 3 ou 4 temporadas iniciais.
Fiquei "agarrada". Ainda hoje faço os mesmíssimos comentários às incoerências científicas (e não só) que vou apanhando, ou a coisas que me intrigam (tipo o cabelo do Darryl ser SEMPRE oleoso, mesmo depois de tomar duche!...), mas a verdade é que me tornei fã da série.
Pensando a sério sobre o assunto, concluo que os enredos distópicos, quando bem explorados, atraem o público em geral por demonstrarem, com recurso a situações extremas, a verdade nua e crua sobre a natureza humana:
Somos animais - e tantas vezes nos esquecemos que somos regulados principalmente por instintos e toda uma herança genética que busca apenas a propagação da espécie, atendendo às necessidades básicas em primeiro lugar, e só depois a considerações morais, filosóficas ou teológicas. Antes de sermos seres cientes, somos bichos.
A sobrevivência do mais apto é a regulação natural do sistema; todos morrem, os mais fracos/menos adaptados morrem primeiro.
As pessoas nunca mudam! Podem apurar alguns traços de personalidade ou aprender algumas coisas, mas a essência de cada um é essencialmente imutável. Somos fracos, temos vícios, erramos, e a história repete-se porque não se consegue fugir a quem somos.
Ninguém é inocente. Nem crianças, nem personagens insuspeitos que foram "bonzinhos" e almas caridosas a vida toda - aparentemente. Todos temos segredos, falhas, vergonhas ou arrependimentos.
Todos podemos ser monstros; en circunstâncias extremas vamos buscar forças escondidas e somos capazes de fazer TUDO (mesmo tudo!), para proteger a prole, o clã e a nós próprios (não necessariamente por esta ordem).
Os momentos extremos trazem à tona o melhor e o pior da humanidade. Como descrente na Humanidade em geral, desconfio que isto seja mais verdade na ficção do que na realidade, mas dou o benefício da dúvida. Se calhar todos temos um herói cá dentro, mas se calhar também todos temos um vilão à espera de oportunidade para se revelar.
Não há bons nem maus. Isto é o que mais me fascina nos cenários distópicos, na televisão, mas sobretudo na Literatura (arte maior, a meu ver), como comprovam grande parte dos clássicos mais geniais. Ao contrário da ficção banal e sensaborona, os grandes mestres conseguiram captar nas suas obras o âmago da essência humana. Não há bons versus maus, não há preto no branco. Todos e cada um de nós somos ambas as faces da mesma moeda. A sangue frio, a análise duma qualquer cena cruel, descontextualizada, leva-nos a tecer quase imediatos juízos de valor. E depois, quando nos envolvemos com a história, e com uma sólida construção dos personagens, invariavelmente criamos empatia, solidarizamo-nos, compreendemos os "actos atrozes" e às vezes passamos a simpatizar com os "malfeitores", porque nos revemos. Porque ninguém é sempre canalha, ninguém é sempre bonzinho, porque ninguém é perfeito nem infalível. Porque isso é ser humano.
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O estagiário (não o "meu", que esse já se foi embora, infelizmente, mas regressou um dia para me trazer os limões que havia prometido na primeira semana de estágio - quase um ano antes) chegou uma semana antes do natal. Foi bem acolhido, claro. Eu fui lembrar The boss de contar com o miúdo para o almoço de empresa e para o cabaz de Natal. Teve, portanto, direito a uma festa de empresa, um outro almoço comemorativo de já não sei o quê (qualquer pretexto serve para a malta se juntar na galhofa e, sobretudo, comer - aquela malta é tipo marabuntas, vocês não estão bem a ver!), e ao cabaz de Natal (bem jeitoso, por acaso). Ao terceiro dia, saiu mais cedo, estava doente. Depois um familiar teve um problema de saúde, não veio. Depois teve problemas no regresso da terra e também não apareceu. Depois esteve doente outra vez. E depois deixou de avisar e continuou a não aparecer. Depois houve algo entre um reality check e um puxão de orelhas e apareceu numa bela tarde. Depois melhorou, "só" não aparecia se algum dos chefes estava ausente. Ou se tivesse de "estudar", como se lembrou de avisar numa 2ª feira depois das 10. Além de tudo isto, nunca conseguiu chegar a horas, queixava-se da instabilidade dos comboios (só que há comboios de 10 em 10 minutos). Deve ser do generation gap, mas isto faz-me uma confusão dos diabos. Comentava isto com o marido, e ele conta-me episódios idênticos na empresa dele. O melhor de todos foi o moço que, como lhe estavam a dar pouco trabalho para fazer (algo a ver com a indisponibilidade das chefias para dar orientação), decidiu deixar de ir durante uns dias, sem dar cavaco a ninguém e achando que ninguém daria pela sua ausência. Claro que a sua esperteza foi detectada (as leis de Murphy não falham) e não se deu lá muito bem. Eu juro que não sou daquelas pessoas que dizem "no meu tempo é que era", mas o meu primeiro instinto é de indignação, por não compreender que noção distorcida da realidade que estes putos têm, se acham que este tipo de comportamentos é aceitável em ambiente laboral. Interrogo-me que noção de responsabilidade lhes foi passada em casa e nas escolas. Depois lembro-me que estamos em Portugal, terra onde reina a impunidade e onde a Chico-espertice dá vantagens inequívocas, e isso, infelizmente, serve de atenuante.
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Já há bastante tempo que costumo usar uma questão, quer num exercício contínuo de auto-análise, quer quando aconselho outras pessoas: o que é mais provável, és tu que estás errado(a) ou é o resto do mundo (que faz/pensa o contrário de ti) que está errado?
Não é suposto a resposta ser sempre a da concordância com a maioria, porque as maiorias nunca foram garantia de sensatez ou de razão (a única falha da Democracia?), mas apenas dar o mote para uma reflexão descentrada do próprio umbigo. É que muitas vezes basta colocarmo-nos na pele de outra pessoa para perceber que aquilo que achamos óbvio pode não ser nada claro para outros, para perceber que os interesses pessoais conflituam muitas vezes com os interesses da maioria, ou até para aceitar contrariedades inevitáveis da melhor maneira possível. É, no fundo, o exercício elementar de nos colocarmos na posição dos outros, ou da mudança de perspectiva. Faz pela tolerância e compreensão do mundo e dos outros o equivalente à psicoterapia sobre o próprio. Experimentem, é grátis!
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Há uns 2 anos veio o padre cá da terra viver para o nosso prédio. Fez-se anunciar com uma cartinha em cada caixa de correio, juntou os votos de Boa Páscoa e tal e tal. Era simpático, mas cromíssimo. Uma vez entrei no elevador, no R/C, onde o sr. padre já vinha, vindo da garagem. Vinha a ler, livro aberto numa mão e a outra ocupada com qualquer coisa. Quem é que lê no elevador entre a cave e o 2º piso!? Enfim. Foi substituído por outro padre passado uns tempos, um rapaz novinho que mais parece aluno de liceu - não fosse a batina, claro. Por razões que agora não interessam, assisti a um evento na igreja onde o senhor padre aproveitou para dizer umas palavras. Fiquei horrorizada. Ali mesmo, em frente a umas boas dezenas de pessoas, confessou-se apaixonado por Bento XVI (Ratzinger). Sim, a palavra que usou foi "apaixonado".
Entretanto o tempo foi passando e nós afastadíssimos dos temas relacionados com a igreja e o padre, como sempre (somos ateus do mais convicto que há e até com uma certa "alergia" à Igreja Católica - e não só). Até que há uns tempos nos contaram cenas dignas de telenovela que eu honestamente achava que só seriam possíveis algures na TVI Ficção. Cenas estas que incluem o padre andar a ser assediado e ameaçado - parece que alguém (dizem as más línguas que as beatas mais supostamente devotas) não gosta deste novo padre e anda a tentar fazer de tudo para o mandar embora. Parece que não só o senhor ficou com medo de andar no seu carro e trocou-o ou anda com um outro carro emprestado pela Diocese, como recebeu no outro dia uma estranha encomenda... Uma cabeça de pato (morto, obviamente) pejada de alfinetes!
Parece mentira, só que não é. Quem é que é capaz de fazer uma coisa destas!? Bons católicos, cheios de amor no coração, seguramente...
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Por uma qualquer razão, seguramente de natureza kármica (em jeito de punição por terríveis malfeitorias que terei perpetrado numa encarnação anterior), na segunda-feira vi-me na companhia de três dos directores da empresa onde passo eternidades a tentar endireitar o que nasceu torto. Isto logo pela fresquinha, à volta duma mesa de refeição que se pretendia informal - tanto esforço colocado nos pacotinhos quase vazios de compal, tão pouco sucesso.
Ora, logo no rescaldo das eleições, em que uma pessoa fica doente dos nervos (pois não há como não), dormiu pouco porque ficou a fazer zapping entre os comentadores da TV e a aguardar resultados mais concretos (talvez apenas para poder dormir com a certeza de que Marinho Pinto não poria os pés na casa da democracia), e desertinha de ter alguém com quem desabafar impropérios e barafustar contra o sentido de voto da maioria minoritária.
Em vez disso, o que encontra? Pérolas de sabedoria de pessoas que, creio que de forma similar aos senhores ministros, não fazem uma puta de uma ideia do que se passa no mundo real, mas pensam que são donos e senhores da razão, lá do alto das suas gravatas italianas e carros de alta cilindrada com emissões dúbias de gases de estufa.
Um deles, que chegou atrasado porque o trânsito estava mau, achava que até era bom sinal, mais pessoas a andar de carro era um sinal de confiança e tal. Eu tentei, sem revirar muito os olhos, explicar que era início do mês, as aulas já recomeçaram e estavam a cair as primeiras chuvas, que fazem os popós deslizar como no gelo e provocam toques e acidentes. Caras de ponto de interrogação e voltam a falar do tempo e do futebol, pois claro - nem havia nenhum tema mais importante a comentar.
Depois o big boss torna a falar da "retoma", e enquanto alguém se queixa dos transportes públicos, dita a verdade que (des)conhece, do alto do seu super-ego (sabem aquelas pessoas que quando falam decretam coisas, de tão plena e honestamente convencidos que estão de serem os detentores das verdades absolutas? Isso.). Ficámos então todos a saber que os nossos transportes públicos "nem são nada maus". São é pouco utilizados pelas "pessoas" (esse conceito vago, lato e sobretudo distante). "Não são nada caros" (para quem tem ordenado de CEO, acredito que não) e "até são eficientes". A última vez que o senhor em questão usou transportes públicos, não sabemos, ora, carro da empresa tem há mais de duas décadas, classe executiva da TAP não conta, é fazer as contas, como diria o outro.
Vou passar a ter esta verdade de bolso à mão quando estiver, mensalmente, a pagar cerca de 12% do salário mínimo nacional pelo passe (tenho sorte, o L12 basta-me), quando os comboios se atrasarem, quando o metro estiver tão à pinha que tenho de escolher entre o submeter as minhas articulações inflamadas e doridas à massagem espalmatória a 360 graus, qual surround sound, ou o deixar passar aquele metro e ficar uma hora inteirinha no cais a aguardar o barco seguinte ao que deixei fugir.
Juro que não se trata apenas do preconceito que tenho para com "os ricos"; é mais que isso. É isso aliado aos anticorpos que já tenho (muitas vacinas, meus caros...) contra o discurso snob, duma altivez cavaquista, de quem tem convicções profundas sobre realidades de que não se conhece sequer a casca, muito menos o cheiro e o que custa no lombo.