Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]
Nunca lhe apertei a mão. Nunca lhe disse ao ouvido "obrigada". Sorvi todas as palavras que lhe ouvi, num anfiteatro gigante da que foi minha segunda casa e que rebentava pelas costuras, em 1998. Como sorvi, saboreando devagarinho, todas as que lhe li, em tantos cenários, de Mafra a uma jangada perdida no oceano.
Não li todas, ando a guardar algumas, a tentar racionar as doses que faltam, por serem finitas, sempre com receio que me fine eu antes de ter o privilégio de as ler.
Sou parcial. Das poucas pessoas que admiro enormemente sem ter conhecido, este será o maior. O mais admirável, pelas letras que compunha como nunca ninguém o tinha feito e muito mais pela humanidade. Tenho uma dívida de gratidão para com ele, cujas prestações de pagamento posso tentar ensaiar em cada linha que escrevo e nunca, ainda que todas juntas e multiplicadas, serão suficientes para balizar a emoção.
Deu-me tanto. Fez-me tanto. Escreveu a minha vida num século errado. Deu nome ao conjunto de sonhos que trago num molho, atados com corda de enforcar, dentro da algibeira. Deu-me um amor imenso e sem sentido que sobra em mágoa e em perdão. Fez-me rir, chorar, demoliu-me um par de vezes. E ajudou a construir coisas inquebráveis em mim. Uma certeza, uma força, uma verdade que se deve às palavras, a humildade perante a insignificante existência, a prostração perante o amor que nos molda.
Parabéns, José. E muito obrigada.
Decididamente, o melhor dia para ir à Feira do Livro é o primeiro. Ainda as melhores pechinchas estão disponíveis, ainda está tudo arrumadinho, cheira a novidade...
Como habitualmente, fui cheia de vontade de honrar o compromisso de não comprar nada - não faz sentido, com tantos livros ainda por ler e com a quota de espaço para os arrumar já esgotada há muito... Como habitualmente, não resisti e trouxe dois da Cotovia (ambos da Simone de Beauvoir) e dois da Quetzal (um da Alexandra Lisboa e outro da Ali Smith), a preços muito simpáticos. O namorado trouxe um traduzido, também da Quetzal, do Irvine Welsh.
Numa nota sentimental, achei a menção aos 20 anos do Nobel do Saramango demasiado pequenina e breve perante o gigantismo do génio (para mim o maior de todos os tempos).
[Eu sei que a minha visão não é imparcial, que eu sou daquelas que acha que Saramago devia ser celebrado diariamente, exultado incessantemente. É que na literatura, há histórias bonitas, há palavras bem colocadas e personagens profundas. Há exposição além de todos os sentidos da beleza e da fealdade do mundo. E depois, além de tudo isso, há obras que nos mudam, como viagens a sítios desconhecidos dentro de nós, fazem-nos reponderar algumas verdades que achávamos inquestionáveis, fazem-nos mudar de lentes. Foi com o Memorial do Convento que me apaixonei irremediavelmente pelo Saramago, mas a cada novo romance a paixão ficou confirmada, reforçada, tatuada em mim. Saramago será sempre o meu gigante literário, as palavras dele terão sempre o poder de me comover de maneiras que poucos conseguem. E eu serei sempre um bocadinho Blimunda, avessa a normas e a ver mais do que devo, aventureira e voadora assente nas muitas vontades que moram em mim.]
[Deitei-me ontem ansiosa, a pensar em como terei de digerir e lidar com mais uma distância que há-de surgir, em data por anunciar. Pensava em como a distância não trará substancial diferença, ponderava suposições e tentava adivinhar cenários, sempre com o peso da antecipação já doer como nunca devia ter doído. Como habitualmente, a antena mística que capta no ar o que ainda não é estava a adivinhar sem saber o que nem tu sabias ainda.]
Pilar diz, sobre Saramago, que era um homem arrasador, e que conhecê-lo foi uma maldição. Consigo compreender bem. É extraordinariamente difícil seguir com a vida depois de conhecer uma pessoa que nos abala a estrutura toda, que supera largamente tudo o que ousámos desejar, que acreditávamos não poder ser real, tangível, próximo, humano.
Quando alguém assim, arrasador como Shiva, nos surge na vida, palpável e concreto, todo o nosso futuro se torna numa mentira. Tudo o que vier depois é insuficiente, é ridículo e deprimente, se posto em perspectiva. A solução será fingir que não se vê, que não se sabe, que não se deseja com ardor respirar aquela existência a tempo inteiro, viver e morrer nos seus braços.
Se calhar o amor é muito isto, uma inesgotável admiração, o carinho e o instinto de proteger e de consumir aquela beleza até à última gota, que até poderá passar despercebida aos olhos do resto do mundo, mas é inesgotável para quem ama, para quem deseja, para quem constrói mundos assentes em toda a poesia por nascer de entre dois lábios e combate uma luta perpétua entre a vontade de o calar com beijos ou continuar a conversar sobre tudo o que existe. É esta batalha que vai sustendo a compostura e bastando para dobrar noites de ausências.
Estou devastada. Não estava preparada para esta terrível perda e, muito honestamente, não sei se estou preparada para viver num mundo sem Saramago, sem Cunhal, com tudo o que tem acontecido neste miserável século XXI, e agora também sem Cohen. Não sou de sentimentalismos, sobretudo sobre artistas, por muito icónicos que sejam, mas hoje chorei e ainda não percebi bem porquê. Não sendo surpresa que Leonard Cohen ocupa desde e para sempre um lugar de eleição de entre as minhas referências incontornáveis na música e na literatura, estou chocada com esta dor, esta saudade antecipada que me carrega a expressão. Está a fazer-me falta talvez a fé, porque seria seguramente apaziguador acreditar em outra coisa que não na finitude. Não sei se será até sempre, mas enquanto estiver por cá, Cohen será um dos "meus" imortais.
[Boicotando descaradamente a ordem da longa lista de posts inacabados (em rascunho ou nas notas do telefone há meses!), hoje é que é, não vou adiar para comentar um assunto na ordem do dia.]
Opinião honesta de pessoa que até tende a ser conservadora em relação à literatura, quiçá a forma de arte em que é menos eclética (apesar de confessar gostar de Dan Brown, lá na categoria do entretenimento):
Gostei da decisão do comité Nobel. Aplaudo. Gosto das letras do Bob Dylan, reconheço-lhes qualidade poética, embora esteja longe das minhas preferências - o Cohen para mim é superior e até tem um romance absolutamente fantástico, e o Nick Cave ainda mais e - desculpem se ofendo a universalidade do inglês - o Ary dos Santos, o Zeca e o Jorge Palma não se ficam abaixo do Nick.
Obviamente que os poemas (cantados ou não) são indiscutivelmente Literatura. Só os velhos do Restelo e os míopes da cultura se chocam porque este autor hoje galardoado não escreve livros. E então? Num país que ainda não se deu conta que produz uma quantidade incrível de génios literários per capita é simplesmente ridículo ver a elite "erudita" a contorcer-se de aversão (e inveja?) com a atribuição deste Nobel. Estavam todos a torcer pelo Lobo Antunes, não é? Eu estava e estarei a torcer pelo Kundera, agora que Saramago e Alice Munro já viveram a justiça do seu mérito reconhecido.
Concorde-se ou não, a Academia tomou uma decisão audaz que tem, se não muito mais do que isso, a vantagem de ter provocado celeuma, espanto, colocando temas seculares no centro da discussão por algum tempo, arejando conceitos. Por exemplo, está agora mais uma porta aberta para agitar a discussão literária quanto à banda desenhada (graphic novels é um termo tão mais elegante), e só isso já é uma lufada de ar fresco bem necessária nas montras de livrarias rendidas ao fast food das letras, que só provocam fastio.
O confronto de cada um com a notícia forçou-nos a reflectir, a formar opinião, provocou-nos o espírito crítico. Se isto não é o melhor que a Academia Sueca podia fazer pela Literatura, digam-me então como seria fantástico que Murakami finalmente ganhasse o Prémio e o quanto a arte literária seria novamente subvertidaà sua mera vertente comercial. Pois. Bem me parecia.
Que nojo é este em que nos estamos a tornar? Ainda há uns meses eram todos Charlies, os mesmos Charlies que apontam e olham desconfiados para pessoas com outra cor de pele, ou com um traje diferente!
Não se conhece e não se compreende o que está escrito num livro e até se assume que é um outro livro - e se fosse? Por favor, alguém que me explique porque é que ler o Corão constitui algum tipo de ameaça!
Eu li o Corão quando era adolescente, da mesma forma que li a Bíblia e os Versículos Satânicos do Rushdie, e o Evangelho Segundo Jesus Cristo do Saramago e O Capital de Marx, e muitas dezenas de outros, até policiais manhosos e os livros condensados das Selecções. E Torga, e Urbano Tavares Rodrigues, e Sartre, e Jorge Amado... E se me apetecer levar o Corão na próxima viagem de avião, isso é motivo para me mandarem prender e interrogar?
Nestas alturas, e digo isto com a maior sinceridade, fico grata por não ter filhos. Não estou preparada para trazer alguém a este mundo a quem tivesse de explicar estas idiossincrasias, nem a Humanidade merece ter grande futuro enquanto isto for tudo aceite como se não se passasse nada de absolutamente aberrante e perverso. É que este tipo de segregação também é terrorismo. Livros considerados proibidos e perigosos e subversivos eram outra coisa aqui há umas décadas. Caminhamos para lá novamente?
"Seria incoerente que me opusesse a que um escritor coma do que escreve, o que me parece, isso sim, condenável, é que escreva quando não tem nada para dizer."
Regra geral. Tal como não repito viagens, regra geral.
Apoquenta-me constantemente a consciência da finitude, da perenidade, do tempo que só escoa num sentido. Preocupa-me não conseguir chegar a tudo quanto sonho (quem manda sonhar demais?), não ter tempo para concretizar. Arrelia-me pensar que estou a repetir um caminho conhecido, um parágrafo já saboreado. A segurança das rotinas faz-me espécie e por isso evito as evitáveis. Ir jantar aos mesmos restaurantes, ouvir playlists na mesma ordem, entrar sempre pela mesma porta, cria-me uma espécie de desassossego de estar a perder alguma coisa de novo que se passe do outro lado.
Igual com os livros, igual com os sítios. Reler o mesmo romance é tirar o lugar (ou o tempo, esse tirano) a outro que ainda não li. Voltar ao mesmo sítio, quando são tantos mais os que ficam por visitar.
Claro que há excepções que confirmam a regra. Sítios que foram visitados com pressa e ficou a sensação de que a experiência não ficou completa, ou que de outra perspectiva as sensações seriam tão distintas. A "alma de cientista" (não fui eu que disse) que me habita obriga-me a tirar a limpo as dúvidas, tenho de saber, e lá vou eu. A companhia (ou ausência dela) transforma uma viagem, isso está comprovadíssimo. Tal como entre ir em "excursão" (blhargh, ptui) é o oposto de ir numa aventura independente.
Os livros, por sua vez, assumem significados distintos consoante o ponto da vida em que nos encontramos, também não tenho dúvidas. Reler os livros que na adolescência nos marcaram e nos 'mudaram o mundo', em que nos sentimos espelhados ou chocados ou deslumbrados, ou que nos acompanharam em momentos particulares, em fases da vida mais ou menos viradas "para dentro", é uma experiência que não se repete, por forçosamente não se poder repetir.
E depois há as obras-primas. Há os autores geniais. Aqueles que, quanto mais lemos outros, quanto mais aprendemos, quanto mais sabemos apreciar, mais e mais gostamos, mais e mais admiramos. Aquelas palavras em que em cada esquina de página descobrimos uma nova verdade de bolso, uma reflexão mais certeira, um presságio mais afinado. Aqueles que nunca se esgotam. A literatura que faz parte do nosso íntimo e ao nosso ritmo, que se cola às sinapses e nela se canoniza. Os sublimes.
De onde se conclui que, para o Saramago, meia dúzia de Nobel não teriam sido demais. E que o Zé Luís caminha a passos largos para este destino.
o melhor de todos os escritores, de todo o sempre, para mim. Porquê?
Porque escreve com a intimidade de quem conta uma estória no sofá, enquanto beberica um chá morno, porque se demora em particularidades deliciosas, porque constata o óbvio que de tão óbvio e comum se teria tornado inominável para outros escritores. Porque cada sílaba tem uma sensibilidade amável, quase condescendente, de quem estudou a humanidade por dentro e foi ao âmago das questões. Porque tem um sentido de humor absolutamente extraordinário, mordaz, surpreendente. Porque esgrime a razão com um sentido de justiça inteligentíssimo e porque tem a imaginação duma criança de oito anos. Porque consegue plantar lágrimas em frases insuspeitas, tão cheias do que é mais puro.
Bendito velhote carrancudo, fazes tanta falta nesta dimensão dos tolos...
"Escrever é fazer recuar a morte, é dilatar o espaço da vida."
Aquela altura do ano sem a menor relevância para não-católicos, em que os coelhinhos põem ovos, que são de chocolate e ocos, em que há um feriado à sexta-feira (estamos mesmo num estado laico?) em que não se come carne, e passados dois dias se finca o dente em pequenos cabritinhos silenciados, para comemorar a ressurreição dum carpinteiro desempregado, bastardo, que andava enrolado com uma senhora da vida e liderava um gang de alucinados cuja ocupação principal era viajar na maionese.
(O meu querido Saramago já não está cá, alguém tem de tentar manter a heresia em dia.)
Boa Páscoa, everyone! Eu vou ali comemorar os tempos em que os portugueses tinham tomates e mudavam as coisas que estavam mal.
Quem, digam-me!, QUEM é que chora, ainda por cima mais que uma vez, ainda por cima sempre em público, com "A Viagem do Elefante", do Saramago?...
Aqui há uns anos, havia alguém que me repetia amiúde “há que dar tempo ao tempo...”, “temos de ir com calma...”. Sempre me mexeram com os nervos, estas hesitações que de tantas reticências colocarem nem chegam a ser dúvida. Sempre a espera, por um momento melhor, pelas condições certas, pelos planetas alinhados. Em prol de quê? Comodismo, talvez. Eu protestava e esperneava, mas depois lá pensava que se calhar têm razão, que sei que eu é que sou a impulsiva, e tolerava. Ia tolerando. Ia controlando o anti-conformismo, aguentando, esperando, desesperando.
Nunca soube esperar. E se estou dependente de outros que tardam, arregaço as mangas e atiro-me à jornada. Se sabemos para onde queremos ir, não começar a caminhar é pura perda de tempo.
O amor não resolve nada. O amor é uma coisa pessoal, e alimenta-se do respeito mútuo. Mas isto não transcende o colectivo. Levamos já dois mil anos dizendo-nos isso de amar-nos uns aos outros. E serviu de alguma coisa? Poderíamos mudá-lo por respeitar-nos uns aos outros, para ver se assim tem mais eficácia. Porque o amor não é suficiente.
“Saramago, el pesimista utópico”, Turia, Teruel, nº 57, 2001
Nos "outros cadernos de Saramago".
Podiam ser Baltazar e Blimunda, José e Pilar, Maria e Carlos. Mas são sempre em par.
"Olharei a tua sombra se não quiseres que te olhe a ti. Quero estar onde estiver a minha sombra, se lá estiverem os teus olhos."
José Saramago in O Evangelho Segundo Jesus Cristo
Todos os dias têm a sua história, um só minuto levaria anos a contar, o mínimo gesto, o descasque miudinho duma palavra, duma sílaba, dum som, para já não falar dos pensamentos, que é coisa de muito estofo, pensar no que se pensa, ou pensou, ou está pensando, e que pensamento é esse que pensa o outro pensamento, não acabaríamos nunca mais.
José Saramago In Levantado do Chão, Ed. Caminho, 14.ª ed., p. 59
Durante duas semanas não chorei. Fui largando camadas e camadas de pele, de mágoas, de tristezas. Fui abrindo lugar a novas emoções, a descobertas, a bocadinhos de mim que andavam esquecidos num qualquer labirinto escuro aonde não pertenço, que eu sou da Luz e da Vida, do Ar e da Música. Mas as lágrimas têm de ter lugar. Não podem ficar entaladas na garganta, a ressequir as emoções. Saem, como as palavras, cada vez mais. Sem pressa nem peso, saem quando é tempo, quando é verdade. Saem por tudo e por nada, que as emoções se transpiram em mim, por todos os poros. É por isso que a armadura de ferro é obrigatória.
Porque tornei a chorar por ele, a minha saudade, num abraço imaginado.
"Sorriso, diz-me aqui o dicionário, é o acto de sorrir. E sorrir é rir sem fazer ruído e executando contracção muscular da boca e dos olhos.
O sorriso, meus amigos, é muito mais do que estas pobres definições, e eu pasmo ao imaginar o autor do dicionário no acto de escrever o seu verbete, assim a frio, como se nunca tivesse sorrido na vida. Por aqui se vê até que ponto o que as pessoas fazem pode diferir do que dizem. Caio em completo devaneio e ponho-me a sonhar um dicionário que desse precisamente, exactamente, o sentido das palavras e transformasse em fio-de-prumo a rede em que, na prática de todos os dias, elas nos envolvem.
Não há dois sorrisos iguais. Temos o sorriso de troça, o sorriso superior e o seu contrário humilde, o de ternura, o de cepticismo, o amargo e o irónico, o sorriso de esperança, o de condescendência, o deslumbrado, o de embaraço, e (por que não?) o de quem morre. E há muitos mais. Mas nenhum deles é o Sorriso.
O Sorriso (este, com maiúsculas) vem sempre de longe. É a manifestação de uma sabedoria profunda, não tem nada que ver com as contracções musculares e não cabe numa definição de dicionário. Principia por um leve mover de rosto, às vezes hesitante, por um frémito interior que nasce nas mais secretas camadas do ser. Se move músculos é porque não tem outra maneira de exprimir-se. Mas não terá? Não conhecemos nós sorrisos que são rápidos clarões, como esse brilho súbito e inexplicável que soltam os peixes nas águas fundas? Quando a luz do sol passa sobre os campos ao sabor do vento e da nuvem, que foi que na terra se moveu? E contudo era um sorriso."
José Saramago