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Ventania

Na margem certa da vida, a esquerda.

Ventania

Na margem certa da vida, a esquerda.

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[Amor de prateleira (parte I)]

 

Ouço-te as lágrimas que escondes, recolhido, embalado em canções que picam e arranham esse coração frágil, de papel, amachucado e vincado das palavras que foram apagadas e reescritas, dos nomes e sinais e rabiscos nas margens. Estendo-te a mão, enxugo lamentos ácidos que sempre vertem em corrosão para o meu colo, que vou-te amparando como posso, com silêncios e os abraços apertados que não te tocam a pele para não melindrar, para não deixar marca - não como queria, com abraços sufocantes, com lágrimas e saliva e contigo embrulhado num novelo pendurado ao meu pescoço, colado ao meu umbigo, os meus ossos escudo protector, os meus cabelos manto de solidão. Envelheço, às escuras. A espera tornou-se uma constante sem incógnita, tudo às claras, mas nem a luz preenche o vazio da antecipação do que está condenado a não chegar. Hoje sou cinzenta, esmorecida. Bordei letras com minúcia, inscrevi-te em mim, dei-te o tempo e espaço de privilégio no peito, onde te cravaste com pregos, na cruz de te querer. Dei-me por inteiro e sem reservas, atirei-me de cabeça e sem pára-quedas, esperando que me acolhesses sem medo de nos crescerem asas negras. Estatelei-me no chão. Quebrei ossos, lombada, as letras amontoadas ficaram espalhadas em rios, pelas nuvens e nas dobras geladas de cada suspiro, nas cavernas longínquas de segredos sem legendas que se lêem nas bocas mudas. Não te mereço palavras meigas, não me sopras poesia, guardas os abraços para quem não queima. Lamentas, não mais do que eu. Dás-te em luz ao mundo, nas não a mim, que já te vi por dentro; não poderias dar-te sem ser por inteiro, em loucura, lava viva sem travões a reformular as verdades, céu abundante de estrelas em vôo picado para o infinito. Talvez tenha de te encerrar de vez num velho livro morto, onde nenhuns dedos curiosos se entretenham a investigar quem fomos nos tempos de andorinhas e de fogo-de-artifício sobre o rio. Olhas o espaço vazio em que eu morava na tua colecção, como se não soubesses ao certo quem o ocupara, talvez já esquecido do sabor dos meus beijos de baunilha e canela picante. Aproximas-te num pulo, em urgência acesa pela ausência, o queixo escorrega em choque, os lábios derretem. Acaricias o intervalo vazio com dedos de fantasma, delicados e etéreos. Caída no mesmo soalho onde jazem também os outros nomes sem título que dizes ter amado, em monte que aguarda a purificação pelo fogo e esquecimento, desvaneço, página por página, ignorada, virgem de ti, desperdiçada. Se existisse ainda inteira poderia ter testemunhado o som áspero de um soluço, ou visto em câmara lenta o momento em que te contorcias no chão, serpente de sangue quente, gemendo a saudade em golfadas. Mas o conto segue desenfreado, na mesma rota. As pálpebras encerram capítulos como quem gira ponteiros e em breve já nenhum espaço sobra naquela prateleira, repleta de romances descartáveis sucessivos, consumidos em série, sem que algum te consuma o fôlego ou te apazigue o gelo estonteante do coração.

 

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O amor não tem prazo de validade; ou está e existe e é um manto que cobre a existência - por cima como um calor enrubescente de que não se pode fugir, por dentro a inundar de arrepios desnorteados, cortantes, que dilaceram cada célula com a ânsia absurda de estarem noutro lugar - ou não está, é alheio a sugestões e esforços e requerimentos. Ou arrasa o espírito com urgências de tumultos irracionais, partilhas e sexos aos gritos ou será um afecto morno e terno, ponderado, responsável e contido - o oposto do que é o Amor.

Aqui do lado esquerdo dos livros que já leste, condenados a não suscitarem mais desejos sôfregos por estrear, e à direita dos que aguardam, pacientes, a sua vez para serem lambidos pelos teus olhos, folheados pela tua delicadeza, para se sentirem importantes e acarinhados e magníficos, resido eu, caderno em branco, por estrear, com excesso de letras a aguardarem sentido que as una. Ganho pó, vou-me esquecendo do que faço aqui enquanto olho as estações a passarem, os reflexos da lua nas sombras líquidas que tecem mistérios alheios. Chovia e fazia frio quando o teu nome me derreteu, na luz baça de uma aventura soluçante e escarpada. Reconhecemo-nos no primeiro instante por entre um fio condutor que havia de nos unir um dia, em alguma arquitectura mestra e profana, numa tecelagem de palavras e vidas por desfolhar.

Não passa um dia sem que me olhes, de relance ou pela alma adentro; por vezes tocas-me a medo (apavorados, ambos) - quase a sugestão de querer aproximar o teu hálito morno do meu, quase uma caneta a tatuar-me na coxa as tuas verdades, quase uma fuga de olhos vendados, um salto pelo escuro dentro, noite estrelada fora, salpicos de maresia nos pés descalços. Logo sacodes as intenções e me colocas mais alinhada com os restantes volumes que acaricias sem pudor. Pancada seca a romper uma melodia gémea, a remeter-me de volta a este lugar que não me pertence, sem promessas, em suspenso, sem data marcada de partida ou de recuo. Amareleço os cantos outrora albos, sedenta de um corte de papel que te faça notar-me, que te faça sentir-me. Enrugo os planos por inaugurar que criei só para os teus braços, com o propósito exclusivo de te abrir o sorriso, esse que encanta, esse em que viveria aninhada e impoluta enquanto a tentação do fogo líquido e puro não me vencesse.
 
(continua...)
 

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Não sabes que podes chorar, que podes falhar, que podes dizer coisas de que te arrependas e que os pedidos de desculpa não te enferrujam. Não te perdoas os erros e esse será provavelmente o maior de todos. Tentar não falhar é o melhor que se pode fazer. Esse muro que não me impede só corta a tua luz. Não tens de ser perfeito, impoluto ou imaculado. Podes ser assim tal qual como és, às vezes imbecil, um bocado estúpido, um estropício e tudo o mais que te chamo quando falho também.

Gosto de ti à mesma, digo em tom de brincadeira. Gosto de ti, digo com toda a seriedade.

As palavras valem o que valem, ambos sabemos. Servem de rampa à magia, de almofada em consolo ou de rastilho às divisões. Os silêncios que te encontro e os teus olhos às escuras dizem perdão. Tuas mãos atrevidas dizem distâncias que precisam encurtar. Certos são os meus dois braços abertos para te acolherem em qualquer maré, sem lugar a gratidão. Repito até perceberes, a amizade não se agradece. Os amigos não se abandonam, ecoas tu de dentro de mim. Quero-te, mas não quero nada em troca. Abraço-te, dou-te colo e guardo as velas para um dia mais bonito. A minha mão estendida leva-te ao teu lugar. Apeado não te deixo. Sozinho não ficarás. 

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De cada vez que brigamos, ou melhor, que andamos às turras, saio sem perceber se te perdi mais um pouco ou se me dei demais novamente. Quanto mais dou de mim, mais te perco, parece-me. Exigirias de mim, se pudesses, que estivesse sempre presente sem estar inteira, com o coração aberto para não te resfriar. De ti só exijo o que sempre repito, a verdade e respeito. Queres que me passe tudo o que tenho entalado, sem teres ainda percebido que tu não vais passar, tu não podes passar, tu estás-me atravessado na goela, por mastigar, a seco. Bebo mais um copo à procura da solução, mas todas as equações têm o teu nome na incógnita, a tua pele, os teus segredos, tu és a constante incontornável de todas as conversas que ficam por ter, com as palavras todas a nú, erectas e festivaleiras.

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Não tenho mais palavras.

Gastei-as a negar-te...

(Só a negar-te eu pudesse combater

O terror de te ver

Em toda a parte.)

Fosse qual fosse o chão da caminhada,

Era certa a meu lado

A divina presença impertinente

Do teu vulto calado

E paciente...

E lutei, como luta um solitário

Quando alguém lhe perturba a solidão.

Fechado num ouriço de recusas,

Soltei a voz, arma que tu não usas, 

Sempre silencioso na agressão.

Mas o tempo moeu na sua mó

O joio amargo do que te dizia...

Agora somos dois obstinados,

Mudos e malogrados,

Que apenas vão a par na teimosia.

 

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[Deitei-me ontem ansiosa, a pensar em como terei de digerir e lidar com mais uma distância que há-de surgir, em data por anunciar. Pensava em como a distância não trará substancial diferença, ponderava suposições e tentava adivinhar cenários, sempre com o peso da antecipação já doer como nunca devia ter doído. Como habitualmente, a antena mística que capta no ar o que ainda não é estava a adivinhar sem saber o que nem tu sabias ainda.]

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Pilar diz, sobre Saramago, que era um homem arrasador, e que conhecê-lo foi uma maldição. Consigo compreender bem. É extraordinariamente difícil seguir com a vida depois de conhecer uma pessoa que nos abala a estrutura toda, que supera largamente tudo o que ousámos desejar, que acreditávamos não poder ser real, tangível, próximo, humano.

Quando alguém assim, arrasador como Shiva, nos surge na vida, palpável e concreto, todo o nosso futuro se torna numa mentira. Tudo o que vier depois é insuficiente, é ridículo e deprimente, se posto em perspectiva. A solução será fingir que não se vê, que não se sabe, que não se deseja com ardor respirar aquela existência a tempo inteiro, viver e morrer nos seus braços.

Se calhar o amor é muito isto, uma inesgotável admiração, o carinho e o instinto de proteger e de consumir aquela beleza até à última gota, que até poderá passar despercebida aos olhos do resto do mundo, mas é inesgotável para quem ama, para quem deseja, para quem constrói mundos assentes em toda a poesia por nascer de entre dois lábios e combate uma luta perpétua entre a vontade de o calar com beijos ou continuar a conversar sobre tudo o que existe. É esta batalha que vai sustendo a compostura e bastando para dobrar noites de ausências.

 

 

Fui contigo o que nunca tinha sido, e tanto criticava nas outras. Fui gaja, fui cabra. Dizia que não estava interessada, mas ia surfando a tua atenção, que me aconchegava o ego. Piscando o olho desinteressadamente, mas recusando. Sem sentido.

Só que afinal havia um sentido. Afinal não era desinteresse, era corpo e alma despertos para qualquer coisa muito especial, espantosa, insólita. Tu.

É universalmente óbvio que os nossos caminhos não poderiam continuar apartados e é aparatosamente despropositado que os mantenhamos hermeticamente contidos.

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E agora, como fazer marcha atrás a toda a velocidade, de preferência voltando atrás no tempo e desfazendo equívocos com erros crassos?

Nua, em frente ao espelho da casa de banho, revejo o meu corpo. Percebo que falta algo que não identifico de imediato. É mais do que a habitual falta de correspondência com a imagem que tenho de mim própria. Falta algo em todo o corpo, no conjunto, como uma embalagem, como se ao litro de leite faltasse o tetrapack. Falta algo que contém, mas mais, falta algo que dá forma e que confere todo um sentido. Como se este corpo tivesse sido engenhado para corresponder a uma origem, ou a um fim.

A água a correr, o cheiro familiar e herbal de espumas doces e terapêuticas.

Percebo, ainda de olhos fixos na imagem reflectida, que vejo mais do que o que realmente o espelho devolve. Vejo-te a ti por trás de mim, cabeça entretida em beijos no meu pescoço, o teu peito contra as minhas costas, os teus braços a cobrirem-me peito e barriga, os meus braços a cobrirem os teus, os meus dedos a dizerem aos teus que sim, que os quero para sempre colados a mim. É isso que falta. Faltas-me tu, no lugar onde pertences, junto a mim.

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Entre mi amor y yo han de levantarse 
trescientas noches como trescientas paredes 
y el mar será una magia entre nosotros. 

No habrá sino recuerdos. 
Oh tardes merecidas por la pena, 
noches esperanzadas de mirarte, 
campos de mi camino, firmamento 
que estoy viendo y perdiendo... 
Definitiva como un mármol 
entristecerá tu ausencia otras tardes.



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Há coisas que também eu não te digo, para não te assustar, pensamentos e vontades, carinhos que brotam de surpresa. Sempre que falas de ter filhos, faço um esforço por enxotar a imagem sorrateira em pastel esbatido de ti a falares com a minha barriga, a acariciares com o nariz o meu umbigo, a inundares de beijos seguros cada estria, enquanto uma mão distraída se entretém com um mamilo pronto a ser partilhado com a tua boca. Penso nestas coisas tolas quando pensas que estás só a debitar banalidades e eu te vejo inteiro, nu, exactamente como és quando te esqueces da armadura. Imagino que tentes esconder de mim, a princípio, quando encontrares poiso que te queira bem e não te faça fugir. Saberei como sei sempre tudo sem que o digas, sem que haja indícios visíveis, sem que me contem. Não to direi com palavras honestas, mas secretamente vou rebentar de orgulho como sempre fico, cheia e vaidosa, com qualquer pequena vitória tua. És um pouco meu, passei por ti e fiquei um pouco em ti, como ficaste tu em mim. Posso vir a odiar a cara sardenta que te leve, mas a ti não. Digo-te tantas vezes, nunca percebes, nunca respondes: gosto de ti.

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Quando me puxas pela mão fazes sentir-me lenta, pequena, gorda, um empecilho. Dizes sem pensar todo o género de barbáries e ofensas, que as minhas unhas estão um nojo, que as pestanas estão um nojo, que o meu perfume é um nojo... Dizes que nunca me visto bem e chamaste-me coisas piores. Mesmo sabendo que eu não esqueço, nunca. Nem sequer consideras a hipótese de me estares a magoar com essas palavras. De cada vez que tenho de te pedir um beijo ou lembrar que hoje ainda não me beijaste, magoa. De cada vez que te peço um abraço, um carinho, magoa. Porque é a tua função perceber quando é preciso e antecipar quando não é. Porque sempre que não é necessário um beijo ou um abraço para me colar qualquer coisa que se tenha partido ainda é melhor, porque é assim que é o amor, espontâneo e inevitável. De cada vez que estás a meu lado sem me ver, sem me dares a mão, e tenho de mendigar um carinho, perde-se qualquer coisa. Não devia ser necessário pedir. Estou farta de pedir e ter de me contentar com migalhas. Inundo-te de beijos, de carícias, de elogios. Digo-te que és lindo, doce, o melhor do mundo, e sempre sem retorno, muitas vezes sem qualquer resposta. E tudo o que digo é o que penso e sinto, sempre! Nunca o disse só para te confortar ou aconchegar a auto-estima, como uma obrigação. E muitas vezes sinto que quando me dizes a mim é só essa a razão. Se não for, é porque estás a falhar em demonstrar. Estou cansada de ser tua mãe, de te ter em casa como uma criança a quem é preciso dar orientações do que se deve e não deve fazer, a quem é preciso lembrar das obrigações, a quem tem de se ensinar, vezes e vezes sem conta, para não estragar isto e aquilo, para arrumar o que se desarruma, para terminar o que se começa. A quem é preciso dizer para lavar os dentes, para apagar a luz, para arrumar os brinquedos. Tantas vezes já te disse que preciso dum homem adulto a meu lado. Adoro os nossos momentos de infantilidade conjunta, mas é insustentável viver com uma criança a tempo inteiro, se esta criança de 40 anos for a pessoa com quem queres envelhecer. E envelhecer em conjunto, ter uma vida em conjunto, significa partilhar o que é bom, o que é mau, o que é chato, doloroso ou precioso. É dar espaço e estar sempre presente, é ser um porto seguro mas também força motriz. Eu quero poder partilhar responsabilidades contigo, rir contigo, estrafegar-te de amor até magoar, correr mundo contigo, se calhar até criar uma família contigo. E também lavar a loiça enquanto apanhas a roupa e levar-te ao médico quando precisas. Mas espero o mesmo de ti. Espero que estejas disponível para me dares massagens quando me dói mais as costas, que me dês um beijo só porque sim, que limpes o chão sem ser preciso pedir por favor. Porque não é um favor. A casa também é tua, é onde dormes e tomas duche, é onde a comida aparece feita e a roupa passada. É onde está uma pessoa que te escolheu, a TI, e a mais ninguém, para lá viver, para sempre, com tudo incluído e quando já tinha desistido de acreditar que isso sequer fosse possível. Quero que me dês balanço para os meus vôos e que nunca me prendas os pés. Quero que queiras mais para ti porque mais para ti é mais por nós. Porque eu sei que juntos podemos tudo. Mas acho que tu ainda pensas que é demais. Que mereces menos, ou que eu não te mereço, nunca sei. Porque não me dizes. Partilhas pouco de ti, ainda não percebeste que assumo tão de frente os prémios como as falhas. Conheces todos os meus segredos, não escondo nada de ti. Sabes a que cheiro pela manhã, conheces o meu bom feitio nos seus extremos, e que sons me tiram do sério. Quero a minha parte, aquilo a que tenho direito. Porque também tenho direitos, não só obrigações inerentes, porque o amor e as relações não devem ser só dar nem sofrer e calar. Já tive disso e já decidi que isso não serve para mim. Se queremos coisas diferentes, se não tens disponibilidade emocional para mais, se tens medo, lamento, mas então não quero. Quero tudo, ou então nada. "De nenhum fruto queiras só metade."

Para não te desfalcar o imaginário poético, nunca te disse que no "Porto Sentido", quando ouves "esse teu jeito de chapa" o Rui Veloso na verdade canta "esse teu jeito fechado".

Nunca te disse que o que mais magoou foi ter tido razão em tudo quando (alegadamente) te magoei, saber disso e ainda assim pedir desculpas, repetidamente. 

Que comprei um livro do FMR que te faria sorrir, talvez.

O que queria de prenda de aniversário.

Que te adoro - porque também te odeio.

Que podia amar-te, se o merecesses.

Que consegues ser patético com tanta insegurança mascarada de super-ego.

Que vais sentir muito mais a minha falta do que eu a tua.

Que sou tão mais forte do que me julgas.

Que foram todas, todas, as vezes. 

 

[Publicado originalmente a 13.07.2010.  E mantenho cada palavra.]

 

 

Hoje vou citar. E vou citar aos bochechos, que muito há para dizer. E quem vou citar? O Edson Athayde, no ionline. Ora vamos:

Fazer amigos, manter amigos, perder amigos. A vida, para mim, é isso. Tudo mais é complemento, é consequência, é redundância.

 

Não sou tão extremista. Há mais na vida para além dos amigos e, pese embora deva ser uma vida incomparavelmente triste e pobre, há quem não tenha amigo algum (acreditem, há) e tenha uma vida, lhe confira significado e talvez até tenha interesse. E há que separar o trigo do joio. Hesito em chamar amigo a pessoas que conheço, até com profundidade, se não as gosto. Outras há que, conhecendo em menor extensão, confio sem second thoughts, de natural que é. Daquelas coisas que não se explicam com muita lógica, mas que se sentem sem dúvida.

 

Fazer amigos: o mais difícil, com o passar do tempo. Quando miúdos, só são necessários uns interesses em comum. Entre os rapazes a coisa é ainda mais simples: basta ser adepto da mesma equipa, gostar do mesmo sabor de gelado, demonstrar alguma habilidade no Subbuteo, ter uma certa fixação pelos seios da professora Sónia. E assim começa uma longa amizade. Depois de cruzarmos o cabo da boa esperança dos 30 anos aparecem as complicações. Mais ninguém que nos aparece é assim tão confiável. Fazemos colegas de trabalho, companheiros de futebol, cúmplices de bares, mas amigos novos é coisa que vai rareando.

 

Na infância, os conceitos de lealdade e confiança são menos permeáveis às nuances das realidades que a vida adulta impõe. E talvez por isso mesmo, quer-me parecer que sempre coloquei as fasquias demasiado elevadas, e cada vez mais com o passar dos anos. No entanto, a vida te-me reservado boas surpresas (ao menos) neste campo. Não guardo amigos de infância. Alguns da adolescência, mas devo dizer que as pessoas excepcionais que fazem ou fizeram parte do meu círculo de Amigos, encontrei-as em grande parte em idade adulta. A comunicação vai muito para além do corriqueiro e toca sensibilidades que não estão expostas aos 15 anos. A frontalidade, o despretenciosismo de se dizer o que se pensa sem querer impressionar ninguém, ajuda imenso a conhecer as pessoas com quem se interage. E por vezes bastam meia dúzia de frases, uma empatia inicial que abre caminho a gargalhadas ou a reflexões. Falo por mim, que tomo consciência de que tenho feito novos amigos, de quem gosto genuinamente e a quem abro a alma sem reservas. As duas moças do curso de escrita, de quem sinto falta das cumplicidades. O pescador gótico com um sentido de humildade que me tocou. A ex-chefe a quem arregalava os olhos e não poupava críticas, de onde nasceram laços profundos. A velha colega de curso que de repente se revelou em palavras à distância. A amiga de amigos com quem estive em duas ocasiões apenas e me lê mais pensamentos do que os que partilho. O dentista que passei a tratar por tu por entre estórias de vida. A colega de trabalho com quem podia conversar dias a fio. É preciso não ter medo. Medo de ser quem somos, de assumir os nossos sonhos e as nossas falhas. Dar um pouco de nós aos outros não nos torna frágeis nem susceptíveis. Torna-nos mais ricos. Dar um sorriso que seja, não custa nada e pode alegrar o dia de alguém. Mais, pode convidar a entrar na nossa vida pessoas que, só por existirem, fazem da vida um sítio melhor.


Manter amigos: dependendo de com quem é pode ser uma missão simples. A amizade permite-nos um sem-número de erros, vacilos, pequenas maldades, desconsiderações. A amizade pressupõe uma quantidade hiperbólica de perdões. Claro, há sempre um limite. Mas não há amigos perfeitos, porque não há pessoas perfeitas. E o que seria da amizade sem a misericórdia, sem a compreensão? Aos amigos, tudo. Aos inimigos, o justo.

 

Não há amigos perfeitos, nem pessoas perfeitas. Dos grandes amigos espera-se demasiado, porque são aqueles que admiramos, que prezamos. As pequenas falhas magoam demais e podem tornar-se desilusões. As mesmas que causamos nos outros. Não há regra nem receita para o sucesso. Bom senso e compreensão costumam ajudar. Ver o lado do outro, walk a mile in their shoes. Perguntar "porque fizeste isto?" antes de julgar. E perceber que se a amizade não vale o suficiente para engolir o orgulho e perdoar, então não é amizade, é conveniência.

 

Perder amigos: costuma ser uma tristeza pior que a morte. Quando o que morre é a amizade e não o amigo, o fantasma do que antes era belo assombra e assusta. Quer pior coisa que um ex-amigo? O ressentimento é o cancro das emoções.

 

Não o diria melhor. Tristeza pior que a morte. Sei bem o que é perder um amigo, a pouca importância que têm as culpas e as razões perto do vazio que se instala no peito. Coloca-se tudo em causa: a importância que se teve para o outro, as palavras ditas, a confiança quebrada. Permanece, sobretudo, o sentimento de injustiça. Como pode alguém a quem quero tão bem descartar-me como se lhe fosse incómodo ou nefasto? A amizade valia tão pouco que foi trocada por isto?

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Fazer amigos, manter amigos, perder amigos. Repito, repito, repito. Penso e repenso nisso ao reparar nas mais de 6500 almas que me adicionaram como “friend” no Facebook. O que devo fazer para não decepcionar essas pessoas que não conheço? Como posso tornar sustentáveis milhares de relações virtuais sem (com isso e para isso) descuidar das pessoas de carne e osso que teimam em ter-me como amigo?
Há muitas respostas para essas perguntas. Mas não gosto de estabelecer regras nem professar ciências. Só queria alertar para que vale a pena pensar no assunto. Conheço gente que, desde que começou a facebookear, passou a tratar com descaso as pessoas reais das suas vidas. Eu mesmo apanho-me de vez em quando enciumado com amigos que postam nas suas páginas coisas que, teoricamente, só os mais íntimos deveriam saber. Se calhar é coisa minha (minha idade emocional não vai muito além dos cinco anos). Mas recomendo atenção. Amigos, amigos, Facebook a parte.
Ou como diria o meu Tio Olavo: “Amigo é alguém que, ao nos conhecer de verdade, não sai a correr.” 

 

Amigo é quem me conhece e, ainda assim, gosta de mim. Digo eu, que nunca privei com o Sr. Olavo. Não vejo porque separar os amigos "reais" do facebook. O facebook (e quem  diz facebook diz qualquer rede social) pode (e deve) conter apenas laços reais, cujo suporte se prolonga no mundo virtual. Longe das advertências do Edson, eu sou apologista incondicional das vantagens emocionais do facebook. Cuide-se da privacidade com bom senso (sempre) - e há ferramentas para isso, e as amizades não têm porque não sair fortalecidas. Claro que não é caso para trocar o convívio pessoal com o virtual. Mas, é inevitável, uma boa parte dos amigos e conhecidos não estão sempre por perto. Há uma boa porção de pessoas que as circunstâncias da vida afastam do dia-a-dia e que nas redes sociais não têm de estar afastadas. Convenhamos, quem vai telefonar ou enviar um e-mail àquele velho colega que está há dois anos emigrado e com quem não se manteve contacto regular só para dizer "olá" ou "ontem li uma notícia que me fez pensar em ti"? E porquê criar anticorpos à tecnologia, se esta, bem utilizada, não só não se substitui aos laços 'reais' como pode mesmo estreitar laços em que, de outra forma, não se investiria o suficiente?...

é muito subjectivo. Protestei tanto que não fazia sentido, nunca fez, e cada vez faz menos sentido. Mas já não importa porque fazer sentido nunca foi importante.

Depois de tanto que se passou sem se ter passado nada, voltei a reler as coisas tão bonitas que me dizias há tão pouco tempo. Parece que foi há décadas e permito a confissão das saudades de me sentir como me fazias sentir. Faz parte do exercício de exorcismo, passar por cima de cada ponto, remoer para escaqueirar e varrer porta fora. Medir a distância do que prometia ser ao que nunca foi - anos-luz! Em menos de um fôlego passei do tudo, dos planos e promessas, à transparência indiferente de coisa nenhuma; ao silêncio - obrigada pelo silêncio.

Prefiro mil vezes saber que sou nada à interrogação, às meias palavras, reticências e desculpas vazias. Não faz sentido? A indefinição é apenas mais uma forma de indiferença, de unilateralidade; é apenas mais uma violência.

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Hoje deu-me uma enorme vontade de chorar, não me perguntes porquê. Alguma coisa estará a desmoronar, talvez. Mudei a rota. Enchi o peito de valentia destilada e marchei até ao nosso banco. Chamei nomes feios a quem lá estava, só porque sim, ou então porque queria mesmo era ver a memória de nós dois, em deslumbramento um com o outro, a deixar fugir beijos tão honestos, de mãos dadas e conversa líquida, eu colada aos teus olhos e à tua barba, tu agarrado a uma fantasia em que eu era protagonista. Tenho vontade de chorar. Fomos poesia. Nunca mais nos vou ver assim, tão puros e novos a estrear, com aquele brilho nos olhos de quem acabou de ganhar o euromilhões mas em melhor, com o tempo a parar à nossa volta, como nos filmes, com a banda sonora a adormecer-nos os sonhos. Como sei que sonhaste, porque eu sonhei também, tantas vezes. Tudo mudou. Os teus olhos não se deixam ver por mim e eu não choro, mesmo sem saber o que me quer este vazio pegajoso que persiste.

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O espanto, em vez de ser apaziguado com a falta de cinética, é depurado. A peneira da memória não é traiçoeira, é sim essencial para remover as insignificâncias que poluem a clareza de raciocínio. Os momentos chave de qualquer história de relevo pessoal não ficam entaramelados na névoa amarga, vão-se cimentando na matéria prima do que somos.

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[Mudar de rota talvez ajudasse, mas não preciso do Largo do Regedor para pensar diariamente naquele fim de tarde, no abraço, nos beijos de que fugi, nas festas que me fizeste nos braços, na suavidade insuperável da tua voz, dos teus lábios, cuja memória perdura e ecoa em ondas, de prazer e de saudade, esses lábios, beijos de nuvens.]

[Mudar de vida talvez me mudasse, mas o coração lá ficou no túnel desde aquele dia, pendurado num segredo anunciado, as tuas mãos que pertencem às minhas mãos, a poesia de que és feito entranhada em mim, essa força incorruptível que desprezei com punhais apontados a mim.]

Deve chamar-se saudade, esta necessidade tão grande de um abraço teu, dos teus beijos tão cheios, em que não cabia mais nada além de uma história por contar, a começar e a terminar ali, tão fugaz. Beijos tão decisivos que nunca mais me permitiram paz. Os teus braços enrolados ao que há de cristalino e puro, como bóias, como âncoras, que me prendem e me mantêm à tona, que me desgraçam e me elevam.

Prometo-me não repetir, prometo-me a cura, vou vedando frestas. Volto sempre ao teu abraço, aos teus beijos tão cheios. Gosto de ti, gosto muito, gosto tanto de ti.

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Baía de Guanabara 
Santa Cruz na fortaleza 
Está preso Alípio de Freitas 
Homem de grande firmeza 

Em Maio de mil setenta 
Numa casa clandestina 
Com companheira e a filha 
Caiu nas garras da CIA 

Diz Alípio à nossa gente: 
"Quero que saibam aí 
Que no Brasil já morreram 
Na tortura mais de mil 

Ao lado dos explorados 
No combate à opressão 
Não me importa que me matem 
Outros amigos virão" 

Lá no sertão nordestino 
Terra de tanta pobreza 
Com Francisco Julião 
Forma as ligas camponesas 

Na prisão de Tiradentes 
Depois da greve da fome 
Em mais de cinco masmorras 
Não há tortura que o dome 

Fascistas da mesma igualha 
(Ao tempo Carlos Lacerda) 
Sabei que o povo não falha 
Seja aqui ou outra terra 

Em Santa Cruz há um monstro 
(Só não vê quem não tem vista 
Deu sete voltas à terra 
Chamaram-lhe imperialista 

Baía da Guanabara 
Santa Cruz na fortaleza 
Está preso Alípio de Freitas 
Homem de grande firmeza

 

[Feliz aniversário, camarada V.]

No outro dia escrevi para mim própria o seguinte:

 

"É difícil conter a vontade de te mandar beijos aleatórios a qualquer hora, despedir-me sem abraços nem lábios colados. É difícil manter uma capa de aparente sangue frio e descontracção quando o coração aos pulos ameaça desintegrar-se em salpicos. É muito difícil não te contar da vontade de fazer planos a dois e das outras vontades que ainda me assombram. Podias ser menos perfeito, podias não me ler os pensamentos, podias não ter sido desenhado à minha medida. Facilitaria a minha tarefa. Assim, sobra-me apenas a esperança de que venhas a ser um calhorda para poder odiar-te em paz."

 

Dia após dia, constato repetidamente o que sempre soube e nunca escondi, nomeadamente de ti. Não tenho vocação para relações superficiais e ainda menos para mentir, esconder ou ocultar. Sou o que sou, quem não gosta pode pôr à borda do prato (como tu). Não vou deixar de ser quem sou. Não vou esconder que (ainda) gosto de ti e sempre que me der na real gana digo-o ou faço o que bem entender. Beijos mil.

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Porque hoje é dia 29. Se pudesse voltar atrás, já sabes o que faria. O primeiro momento teria sido diferente e talvez a partir daí tudo tivesse sido diferente também. Mesmo com todas as complicações e frustrações, mesmo virada do avesso e sem bússola, e mesmo sabendo que nada é exactamente o que parece, mas antes tudo o que o instinto me diz. Em voltando àquele outro dia 29, faria hoje tudo diferente, sem resistência nem hesitações. Atirava-me de cabeça para os teus lábios e deixava-me ficar aninhada nos teus braços até serem horas da vida real. Não largava. Não me afastava. Tu ficavas à mesma com o meu perfume nas mãos, mas as nossas mãos já não ficariam vazias. Nunca mais vazias.