Dedicado a todos os náufragos de barcas aladas.
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Dedicado a todos os náufragos de barcas aladas.
Velozes e gélido,
Fantasmas
Os traços negros arrombam
A quietude das tardes frias
Apaga-se o céu como cortina
As aves estagnam,
Os arbustos chiam.
Os olhos dela gritam
Exclamam em surdina
Como uma cruz
Incerta, trémula de susto
Cala toda a luz
Abafa um choro, um riso,
Abismo com sapatinhos de lã
"O amor não tem prazo de validade; ou está e existe e é um manto que cobre a existência - por cima como um calor enrubescente de que não se pode fugir, por dentro a inundar de arrepios desnorteados, cortantes, que dilaceram cada célula com a ânsia absurda de estarem noutro lugar - ou não está, é alheio a sugestões e esforços e requerimentos. Ou arrasa o espírito com urgências de tumultos irracionais, partilhas e sexos aos gritos ou será um afecto morno e terno, ponderado, responsável e contido - o oposto do que é o Amor."
Não sou a maior fã de fazer balanços ou da perspectiva contabilística da vida. Não gosto de fechos, ou de despedidas ou de finais. Gosto de inícios, de estrear cadernos, sorrisos, beijos e emoções, com todas as possibilidades em aberto, gosto da aventura do desconhecido a seguir a cada esquina da vida num lugar estranho, sem mapa nem destino.
Apesar de fugir dos clichés em geral, nomeadamente do balanço de fim-de-ano, dei por mim a reparar que, ultimamente, os meus ciclos pessoais têm colidido com Dezembros e Janeiros. Os últimos 12 meses têm sido de uma intensidade que me esgota e que me arrepia de expectativas. Estou grata, muito grata, pelo que (e, sobretudo, por quem) de bom e maravilhoso tem surgido no meu caminho e tem vindo ter às minhas mãos, desde que aprendi a aceitar mais e a duvidar menos.
Têm chegado desafios muito bons, que tenho agarrado pelos cornos, ainda que com os joelhos a tremer num par de ocasiões. Ainda não me arrependi, até porque só costumo arrepender-me do que não faço.
Já sabia desde sempre que ninguém combate as nossas lutas por nós, não as podemos deixar para outros porque não há outros; quem acredita num mundo melhor tem de se pôr em marcha e ir desbravando terreno. Este foi o ano em que arrepiei caminho num lado (mais) acertado. Fazer estas lutas ao lado de camaradas como os que me ladeiam tem sido um enorme privilégio, uma aprendizagem incrível, e faz a diferença entre o desepero de achar que se está sozinho e acreditar que juntos vamos conseguir. Ocupámos as ruas, tocámos nas feridas, desafiámos opressores, gritámos por direitos e pela justiça, e vencemos algumas batalhas. No sindicalismo, no feminismo, no anti-capitalismo, na justiça climática e ambiental, pela igualdade entre todos e contra todas as opressões, somos muitos, somos sementes e faíscas e, pese embora a luta jamais se adivinhar ligeira, a certeza da inevitabilidade da vitória vai ganhando espaço, fincando pé, criando raízes profundas.
Foi este ano que a escrita tomou um tom mais sério, que deu pequeninos frutos de papel, esquissos que serviram para definir por onde me vejo e desejo e por onde não quero ir. Foi neste ano que reconquistei sozinha um espaço em que posso ser sempre quem sou, e que trouxe entre as páginas amigos especiais, posso mesmo dizer excepcionais, que me leram o coração escancarado e os pensamentos trancados a sete chaves, as minhas verdades que faço explodir em festim e os segredos indizíveis soltos nas entrelinhas.
Não foi sempre bonito e leve. Este ano chorei como já não chorava há muitos anos. Chorei de cansaço e de tristeza, de desespero. Passei noites em claro, perdida, sem saber o que fazer para não permitir que pessoas que amo se perdessem; afastei, aproximei, esgotei as palavras e os silêncios, dei tudo de mim. Fiquei fisicamente (mais) doente com maleitas da alma, com o coração a querer sair pela boca, quase literalmente. Perdi Amigos sem perceber bem porquê. Perdi a vontade de viver - e não há forma eufemística de dizer isto. Encontrei amparo nos pontapés que me deram quando já estava no chão e me obrigaram a reagir. Foi só quando me trataram como louca que percebi que não tinha perdido a sanidade. Encontrei guarida e conforto nos colos que sempre me acolhem com amor, ainda que o sempre não tenha anos plurais. Encontrei Amigos espantosos em lugares insuspeitos, e outros em lugares mais do que prováveis. Fiz planos, cumpri planos e alterei os planos.
Chorei comovida de emoções transbordantes, sem outro lugar por onde escorrer, quando me ofereceram poemas e tive a certeza de que aquele amor espinhoso e enjaulado seria eterno. Encontrei Amor genuíno nos antípodas e num reflexo que quase podia ser um espelho. Foi este ano que realmente multipliquei o Amor em amores mais que perfeitos. Respirei poesia, dei-lhe a mão, deitei-me com ela e dormimos abraçadas em suspiros ofegantes e surreais, de dedos entrelaçados e cabelos desgrenhados.
Fui, sou inteira, de punho em riste e coração ao alto, fractura exposta do esqueleto da alma, blindada à prova de medo, brava e agreste e intragável.
Não carece de cálculos matemáticos a constatação de que 2018 foi um dos melhores e um dos piores anos.
Afinal, apesar dos desfalques que as mágoas levaram a cabo, este ano consegui passar uma boa parte do meu tempo a fazer aquilo que sempre quis. Aprender. Amar. Escrever. Lutar. Aprender mais. Amar mais. Escrever mais. Lutar mais. Cresci. Ousei. E nunca, nunca, me resignei.
Ando com a cabeça em falência técnica e a escrita talvez tenha de ficar em pausa um bocado, mas a simpática Maribel Maia, do blogue Educar Com(Vida), passou-me esta “batata quente”, que me parece um bom pretexto para enxotar as moscas do blogue e para os potenciais leitores perceberem que atrás do pseudónimo está uma pessoa real, de carne e osso, com momentos e problemas e gargalhadas, com falhas e altos e baixos. Um bocadinho de mim, sem máscaras.
1 - O que mais odeias em ti?
Tudo, mas no topo da lista está a minha incapacidade de não deixar transparecer o que penso e sinto, e a constante necessidade de falar de tudo o que me incomoda, não deixar nada por dizer.
2 - Peso
Demasiado. Costumo dizer a brincar que é “peso intelectual”, mas não só não é como é uma manobra de diversão de um tema que me incomoda e fragiliza.
3 - Se pudesses visitar qualquer lugar no mundo onde é que irias e por quê?
Nova Zelândia, porque é um destino de sonho e com o qual tenho vindo a sonhar nos últimos tempos. E também todos os sítios do mundo que ainda não conheço.
4 - A última coisa que te fez chorar
Uma desilusão das grandes, em crescendo, há umas horas.
5 - Se pudesses voltar atrás no tempo, o que mudarias?
Só me arrependo do que não fiz. Não teria fugido um par de vezes da inevitabilidade.
6 - Eu não vou morrer sem…
escrever um livro.
7 - Quanto tempo levas para ficar pronta para sair?
Desde que acordo até sair a porta, em circunstâncias normais, 40 minutos.
8 - Último lugar em que estiveste
Passei o fim-de-semana no Liceu Camões, em Lisboa, a participar dos IV Encontros Internacionais Ecossocialistas, a ouvir gente que partilha do meu sonho de transformar o mundo num lugar justo e sem opressões.
9 - Comida favorita
Sardinhas assadas, polvo à lagareiro, leitão assado, sopa da pedra, feijoada, chili com carne. Queijo de qualquer tipo. Nectarinas. Figos. Dióspiros com canela. Presunto.
10 - Comida que não comes de forma alguma
Pimentos e cartilagens de bichos.
11 - Música do momento
Acho que chegou a hora - Tiago Bettencourt
12 - Vivo perdendo…
a calma. :(
13 - Uma frase…
A luta continua!
14 - Último concerto a que foste…
David Fonseca no Coliseu, comemoração dos 20 anos de carreira.
15 - Última mensagem no whatsapp
http://camp-in-gas.pt (visitem também e subscrevam a newsletter!)
16 - Última vez que te stressaste
Há umas horas.
17 - Tira uma selfie e mostra
18 - Uma música com a palavra AMOR
19 - O que é feio, mas que tu achas bonito?
Quem o feio ama, bonito lhe parece. Acho as bichezas todas lindas e fantásticas, das ratazanas às aranhas, escorpiões, raias e escaravelhos, tudo!
20 - Mostra a última foto do teu instagram
21- Uma frase que a tua mãe diz sempre
“Gosto muito de ver este artista a trabalhar!”
22- Eu estou...
tão cansada...
23 - Eu sou...
uma revolucionária, aventureira e viajante presa na vida de uma assalariada mal paga.
24 - Eu quero…
aprender tudo o que possa, quebrar as correntes que oprimem a minha classe e fazer alguma diferença positiva nas vidas das pessoas com quem me vou cruzando.
25 - Ser amigo é...
uma definição que devia rever para conter as desilusões. Ser amigo é amar o outro por quem ele é, é partilhar os fardos pesados E partilhar também os momentos de alegria e celebração, é dizer sempre toda a verdade, é aceitar os erros e dar apoio mesmo quando não se concorda com as decisões do outro, é dar raspanetes quando é preciso e dar abraços sem reticências. É fazer bem ao outro e não permitir que a vida desgaste os laços.
26 - Quando morreres...
as dores vão dar tréguas.
27 - Um livro:
O Memorial do Convento (ou todos), do Saramago, sempre. Incontornável. Os capitães da areia, do Jorge Amado, outro romance life-changing. Qualquer um de contos da Alice Munro.
28 - Um filme
Cidade de Deus, do Fernando Meirelles.
29 - Uma meta a cumprir este ano
Chegar aos 2.222 seguidores na página de Facebook, sem sponsors!
30 - Queria ser uma formiga para…
ver de perto pormenores que me passam despercebidos e ter finalmente um exoesqueleto protector.
31 - Calças ou vestidos?
Jeans.
32 - O que te faz feliz na TPM?
Abraços e chocolate negro.
33 - Ser feliz...
É preciso tão pouco para ser feliz, e às vezes é tão difícil conseguir esse pouco.
34 - Queria ser...
mais forte, mais fria, mais alta, mais bonita.
35 - Queria ter...
Saúde.
36 - Se eu fosse homem (mulher)...
Poderia usufruir de todos os privilégios de que os homens (sobretudo os ricos, brancos e hetero) usufruem sem dar conta de serem privilegiados. Ganhava mais. Tinha mais leitores. Podia sair sozinha para a rua ou um bar à hora que eu quisesse, vestida como me apetecesse, beber o que quisesse, sem medo de ser violada, agredida, assediada ou de ser apelidada de oferecida, puta, galdéria...
37 - Uma pessoa que tens de/queres conhecer pessoalmente
Os que gostaria de ter conhecido já estão mortos.
38 - Cerveja é…
Pão líquido, que me faz inchar como um balão.
39 - Na noite passada...
Dormi seis horas ao todo, muito mais do que a média dos últimos tempos. Acordei às 4, andei às voltas na cama, mas ainda consegui dormir mais um bocado.
40 - Poderia ficar horas...
A ler, a escrever, a passear a pé por um sitio desconhecido.
41 - Uma careta…
língua de fora para fazer os outros sorrirem.
42 - O teu lema
In two days tomorrow will be yesterday.
43 - Morres de medo de...
Ficar dependente de alguém.
44 - Darias tudo para...
que acontecesse a revolução da classe operária, para que o mundo fosse finalmente livre e justo para todos.
45 - O teu maior defeito que é uma grande qualidade:
Sou muito crítica, penso demais e sou muito analítica, o que implica uma auto-flagelação constante mas dá imenso jeito em termos de estratégia e pragmatismo.
46 - A tua maior qualidade que é um defeito:
Sou brutalmente honesta e nunca deixo nada por dizer. Está claro que só me prejudico.
47 - Uma blogger que tu admiras e 3 qualidades dela
Uma muito recente blogger (que estreou o blogue Mulher de Papel hoje!), de quem admiro a elevadíssima qualidade literária, a capacidade de parecer serena quando tem a alma em ebulição e a generosidade: Lara Barradas. Sigam de perto. ;-)
48 - Que horas são?
17:06
49 - 5 palavras com a letra V
Vida
Viajar
Vitória
Ventania
… e o nome do meu pai, que não vou dizer.
50 - Indique 5 pessoas para essa TAG!
Não me apetece.
Magnetismo inevitável, talvez. Premonição, dificilmente. Mas um instinto aguçado, do qual duvidavam demasiadas vezes, dizia-lhes quase tudo o que precisavam saber. Ele captou-lhe os aromas de desafio na voz pequenina de veludo e chilreios; na talhada de verdades em betão, a promessa de transpor, de punho em riste, os seus muros e arames farpados para o encontrar do outro lado, inteiriço e solto, liberto no remoinho de que se vai cansando de ser. Ela cumprimentou-o com a familiaridade de quem galgou os séculos a seu lado, vendo-lhe tudo sem nunca o olhar, sem saber que cada um existia de verdade e na certeza estridente que é a dos argumentos de romances perfeitos que se colam à alma e a moldam, a definem como um destino. Ele soube que no seu colo de rola encaixavam os risos e os medos pendentes de permissão, que as suas tempestades, alvoroços e calmarias etéreas cabiam todos entre os braços e pernas tão caseiros daquela morena de olhos turvos, que lhe afagaria todos os gritos emaranhados nos cabelos e que ao sangue dela pertencia, líquido e solúvel por todo o corpo. Evitou os atalhos e disparou um arsenal de flechas ao epicentro do alvo, seguro e certeiro. Ela só estremeceu; fez algumas tentativas de expulsar as setas inquinadas do coração calejado, insistiu até se render à enormidade da cratera que a engolira inteira, de dentro para fora. O vestido remendado da vidente mística, guardadora de segredos e artesã de narrativas redondas, não resistia a cair num só sopro, gesto resoluto e acérrimo, perante o olhar encantado e as mãos gulosas daquele estranho que lhe nascera em rompante de cravos a florir no peito blindado, qual bomba atómica que arrasa os tempos do antes e do depois, semeia só poesia e beijos prometidos em mares chão. Ofegavam, ambos, tingidos por um desejo desastroso de escapar aos contornos castradores das dimensões reais e palpáveis, das impossibilidades que os continham quedos, mudos, agrilhoados.
Passaram duas vidas inteiras a fugir da palavra Amor, como verbo de amar em surdina contínua, como sentença em pena suspensa, como almas penadas a quem os paraísos de passear de mãos dadas e de abraços demorados estão interditos para a eternidade. Depois das fugas com pés descalços nas rochas escarpadas de lâminas cruéis ou nas areias escaldantes dos mais áridos desertos, pulavam para tapetes de bonança e aconchegavam-se com cobertas de ternura e mantos de promessas de nunca mais.
Não conseguiam evadir-se juntos para a terra dos sonhos, cativos que estavam de galáxias apartadas e unidas pelo éter em que se soltavam nomes como âncoras definitivas, pesadas, graves. Boiaram numa jangada imaginária, à tona do mundo, com sonhos por leme, até serem despedaçados por procelas e tormentas grotescas, ignescentes distâncias e ausências.
As palavras às vezes feriam como relâmpagos arremessados contra o casulo de aço e gelo em que ele se encolhia, impotentes mas ruidosas, ecos dos enigmas que ele largava em molduras ferrugentas de paisagens oníricas nunca palpáveis. Ela enlouquecia e arfava de dor com as reticências passivas e os silêncios que lhe lia nos olhos, os beijos retidos, só desenhados no ar. Uma vez achou-se perdida no sorriso de luz que crepitava no lado oposto da sala e sentiu-se a queimar, dissipada, prostrada em cinzas. Terminou naquele instante a sua liberdade de ser outro alguém, de emergir noutra pele renovada, de aprender a viver de outra forma que não nas palavras que ficaram sempre por dizer.
Ouviram as mesmas canções no ombro um do outro até serem consumidos pelo tempo e pela erosão da finitude. Exorcizaram as distâncias soluçadas em sílabas a gotejar em par e permaneceram enleados de verbos e adjectivos, sempre parcos, insuficientes até para delinear os contornos mais desmaiados de um Amor desfocado, a dois tempos, duas faces umbilicais e contrárias da mesma lua destemida e desfigurada. Cumprindo a profecia, permaneceram até ao fim dos dias unidos, um dentro do outro, e isolados, separados pela vida.
(texto submetido ao Concurso "Até que a vida nos separe", promovido pela editora Papel D'Arroz)
Balbuciaram duas ou três sílabas quando ele entrou. Teve de tocar à campainha, já havia entregue as chaves da casa no dia em que formalizaram a escritura e a casa passou a estar só em nome dela. O gato preto, Malaquias, espreguiçou-se e levantou-se pachorrento da pedra do parapeito da janela do quarto, que deixava de estar fresca com a incidência do sol do início de tarde. A última coisa que os unia, além do filho que fizeram juntos uma década antes, estava por fim a ser arrumada, devolvida ao seu lugar. Ele estendeu o livro de páginas amareladas e capa gasta, num tom de laranja que sugeria já ter sido vermelho.
- Desculpa, parece que foi à guerra... Deixei-o ao sol muitas vezes, levava sempre na mochila quando ia... Quando saía por uns dias.
- Não tem importância, Miguel. – mentiu ela em voz pequenina e despachada.
Esticou o braço e pegou rapidamente no romance sem interesse que ele lhe havia oferecido pelo seu décimo oitavo aniversário, receando que um movimento mais lânguido denunciasse o tremor eléctrico que sentia por todo o corpo. Largou com suavidade na cadeira próxima o volume que lhe entregava aquele homem estranho que tinha sido seu amigo, confidente, namorado, depois noivo e marido durante alguns anos, até se tornar apenas uma cara familiar, que reconhecia das fotografias que ainda mantinha, por respeito ou solidão, nas cómodas e paredes. Sabia tudo deste homem, onde nascera, os nomes completos dos irmãos e pais e tios, a cor da porta da casa onde viveu na juventude, os pratos preferidos e a aversão que tinha ao sabor da hortelã, o jeito como coçava a testa quando tinha sono; porém, não o conhecia. Já não o conhecia nem sabia nada dele. A desabituação de um quotidiano que deixa de ser partilhado pode ser fatal quando a distância se instala, mais do que entre endereços, entre duas vozes caladas. O fosso entre aquelas duas vidas antes entrelaçadas tinha-se tornado fundo demais, sem pontos de contacto, todas as pontes ruídas, deterioradas pelo tempo e por bafios acumulados.
- Bom, então vou andando, não é? Na sexta-feira venho buscar o Pedro para o fim-de-semana, como combinámos.
- Então vá, não te atrases. Na sexta-feira, digo. O menino está ansioso por ver o quarto novo lá na tua casa. Não fala de outra coisa.
- Sim, eu sei. Tu também podes lá ir ver, pintámos o quarto de verde, está giro.
Iniciou um sorriso quase entusiasmado e depois pareceu-lhe despropositado. Que ideia tão descabida, convidar a ex-mulher para ir à casa onde vivia já com a namorada. Pausou.
O cabelo dela recebia da janela raios transversais de sol que nele acendiam um fogo alaranjado a emoldurar o queixo fino, escorrendo em fiapos pelo pescoço e pelos ombros encolhidos. Por um fragmento de instante, ele vislumbrou a miúda apagada com quem tinha dado o primeiro beijo na adolescência. Franzina, de voz aguda e débil como o corpo, cara sardenta e olhos mortiços. Viu-a então e agora como uma boneca de trapos que precisava de ser salva duma espécie de abandono, que se não fosse trazida à vida definharia prostrada, amarelecida e crespa como o Outono fazia às folhas das árvores, num banco de jardim ou em qualquer outra plateia de onde os picos de acção só são observados e aplaudidos, ancorada aos receios ou a uma qualquer irrealidade paralisante.
Ela passara toda a sua vida na hesitação, não experimentando a água até ser puxada para o mar, à espera que alguém lhe desse permissão para rir, para existir. Sentia que nunca tinha feito nada para conquistar o direito de ser dona de si, caminhava esgueirando-se dos obstáculos, como se a pedir licença para ser feliz, em bicos de pés, para não incomodar. Quando ele a olhou nos olhos antes de a beijar pela primeira vez, não resistiu, nem saberia como. Até a respirar o fazia de mansinho, ligeiro, quase sem se notar. Ele tinha salvo a menina tímida que não sabia quem era, injectou-lhe um fôlego fresco e encantado com os seus beijos e planos a dois. Mostrou-lhe que o mundo era dela se ela o quisesse, e ela ia sempre com ele para onde ele a levasse. De mãos dadas, ela tinha a direcção e o rumo que ele indicasse. Sem a mão dele a guiá-la, sentia-se perdida e sem propósito novamente. Naquele instante que sentia fatal como um ponto final, sentia que tinha falhado na sua única missão de vida: ser uma mãe exemplar, uma esposa dedicada. Só tinha de se ter mantido no plano. Quando, seis anos antes, ele tinha aceite uma proposta profissional a dois mil quilómetros, ela fez o que achou que esperavam dela. Aceitou a decisão que ele comunicou, sem mostrar sequer a mágoa que a roía de nem ter sido consultada. Afinal, era um bom dinheiro que entraria no orçamento, e não havia de demorar mais de dois ou três anos. Ficou, a bem do menino, da estabilidade, sozinha com ele. A vida não era fácil lá para onde o marido ia, as ruas eram inseguras, havia crime e dificuldades. "O pai foi ganhar dinheiro para nós, já está quase a vir ver-te", explicava sempre que o miúdo perguntava ou chamava pelo pai. As birras em que gritava desalmadamente pelo "papá" foram reduzindo e eventualmente foram sendo substituídas pelos pequenos actos de rebeldia, respostas tortas. "Aposto que se o pai aqui estivesse deixava." "Eu quero ir viver com o meu pai!", rosnava decidido para desconsolo da mãe. Ela também queria ter o pai dele ali, presente, a partilhar decisões e responsabilidades. E queria ter o marido ali, presente e a completar o pedaço que lhe faltava. Falavam ao telefone quase todos os dias, no início; ele contava os exotismos que o espantavam, ela dava conta do que se passava na escola do menino e das banalidades que lhe compunham os dias. Às vezes riam-se muito das estórias caricatas que guardavam para despoletar gargalhadas no outro, quase um simulacro das noites gostosas e serenas no sofá, em frente à TV, depois do miúdo estar deitado. Outras vezes ela confessava as saudades que tinha dele, para de seguida se sentir culpada por deixar no ar aquela fraqueza, por lhe infligir uma culpa da ausência dos papéis de marido e de pai, afinal ele estava a fazer o melhor que sabia e podia, a ganhar dinheiro - porque tudo se resume sempre ao dinheiro, porque a renda da casa não se paga sozinha, porque há contas para pagar, há a creche do menino, há as consultas e as vacinas, só em material escolar para cima de um dinheirão! "O pai foi ganhar dinheiro para nós", repetia-se por vezes em surdina, sozinha no quarto, de noite, a meio das insónias. Esticava o braço para o lado dele na cama e os lençóis frios e imaculados confirmavam a ausência, a distância, a falta de materialidade das memórias e o peso de chumbo das saudades. Tinha medo de estar em casa sozinha com o pequeno Pedro. Poucos meses depois da emigração de Miguel, o pequeno já dormia sem sobressaltos e bichos papões, e decidira passar a luz de presença para o seu quarto, com a desculpa de que o miúdo podia precisar de chamar a mãe durante a noite e assim ficava com o caminho iluminado. Desculpa pobre, a única pessoa que ali tinha medo do escuro e de dormir sozinha era ela.
Sabia racionalmente que a culpa que sentia naquele final era descabida, mas nem por isso a sentença lhe parecia mais leve. Não tinha sido ela a quebrar os votos que tinham feito um ao outro. Tudo na vida dela a fazia sentir em dívida para com o mundo, inferior aos exemplos da mãe e da irmã, super-mulheres, fadas do lar, tolerantes para com as falhas dos seus maridos. Sentia os olhares condescendentes e jocosos quando, no trabalho, no refeitório partilhado com colegas confessava que se esquecera novamente de colocar sal na comida ou quando perguntava por alguma receita ou procedimento culinário muito básico. As outras mulheres faziam tudo parecer tão simples e natural. Divorciadas que orientavam sozinhas a casa e dois e três filhos, solteiras que namoravam e saíam com amigos e viajavam, decididas e sem hesitações. Invejava cada uma, não pelo que tinham, mas pela força que imprimiam em cada decisão, em cada argumento. Quando lhe perguntavam em conversa sobre uma polémica qualquer da actualidade, remetia-se quase sempre à mesma resposta: “não sei, não percebo nada disso” ou “não me meto em política, para mim são todos iguais.”
Recorda-se das recomendações maternas antes de se casar, aos 22 anos. Sobre a lida da casa, as poupanças, e outras inutilidades que, grosso modo, lhe passaram ao lado. Ninguém lhe tinha dito como lidar com a solidão. Nenhum conselho falava do que fazer quando se sentia oca, sem força para nada, perdida. Sobre quais os passos correctos que podia tomar, sem manchar a reputação ou ofender o marido, quando queria dizer-lhe que tinha falta dele, que tinha vontade dos abraços nocturnos de antigamente, em surdina para não acordar o menino, que a preenchiam e lhe mostravam o mais próximo que conhecia da plenitude por alguns instantes. Não sabia, nem sabia que podia perguntar, por isso continuou sempre, obstinadamente, a fazer o que sabia fazer bem: calar. Viver em fuga. Passo ligeiro. Não incomodar. Quando a relação começou a ver as lonjuras distendidas, os silêncios prolongados, continuamente a ser esmagada com o peso da ausência, sabia que provavelmente devia ter feito alguma coisa, devia ter dito alguma coisa. Nunca o questionou sobre os dias em que ficava incontactável, supostamente a sul, nem mesmo quando lhe chegaram rumores que era por vezes visto com uma mulata muito bonita, de mãos dadas, ou quando viu uma fotografia de um almoço de amigos a que ele a levou. Pensou muitas vezes que o silêncio tinha sido sinónimo de conivência, de permissão até. Não que lhe fizesse uma enorme diferença que houvesse outra mulher, ela nem era dada a ciúmes ou sentimentos de posse, só não queria perder o suporte de que dependia. Nunca lhe disse “preciso de ti”, apesar de ser essa a maior questão. Talvez se tivesse estado disponível para passar algum tempo com ele na vida lá longe, fazer-se corpo presente. Talvez se mostrasse mais entusiasmo pelos relatos dele, se tivesse feito mais perguntas, perguntas diferentes. Talvez se naquele dia em que ele estava a passar umas férias forçadas em casa, à conta do calendário do trabalho, ela não se tivesse esquecido que podia ter sido ele a ir buscar o menino à escola quando ligaram a dizer que estava com vómitos e febre. Como é que ela podia ter-se esquecido da presença tantas vezes desejada do marido e pai do filho? Tinha-se habituado a ser mãe e pai. Tinha-se habituado a depender só dela, a contar só consigo própria, a largar tudo quando fosse preciso. Foi nesse dia que, desnorteada, soube que estaria sempre sozinha. Percebeu que afinal era sozinha que estava já há alguns anos, e até tinha sobrevivido. Privada de muitas coisas, com a solidão por única companhia todas as noites, mas sem precisar tanto de muletas como acreditara até então. Os regressos têm destas coisas. Por vezes passa-se tanto tempo a desejar recuperar uma fotografia difusa do passado que, quando o regresso se dá, reparamos que toda a harmonia que se pretendia recuperar deixou de fazer sentido e deixou de ser, afinal de contas, desejado. A saudade do que tinha, outrora, sido, não pode ser apaziguada senão com uma saudade do que está para vir, novo a estrear. Naquela tarde, depois de fechar a porta, surpreendeu-se quando suspirou de alívio. Não fazia a menor ideia do que se seguiria, mas tinha finalmente a certeza inabalável de que havia um caminho a percorrer e que o faria, passo a passo, com maior ou menor segurança, em qualquer direcção por que optasse. Já não havia ninguém que lhe puxasse a mão, mas também nunca mais admitiria uma outra mão que a travasse.
O conto "A Mãe sem nome", da minha autoria, foi publicado este ano na colectânea "Ei-los que Partem! - Vol II", da Papel D'Arroz.