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Ventania

Na margem certa da vida, a esquerda.

Ventania

Na margem certa da vida, a esquerda.

origem

Como sempre tem sucedido até aqui, a micro-divulgação literária que está ao meu alcance é dedicada a alguém que não conheço pessoalmente e com quem pouco conversei. Como aconteceu também com a estreante desta singela rubrica, a minha querida Susana Nunes (que recentemente publicou em nome próprio um maravilhoso, como ela, livro de poesia, "Na Pele da Palavra", da In-Finita, parte da colecção Poiesis, com coordenação do João Dordio), com a convidada de hoje, a Sónia Correia, encontro empatias no meio das sílabas, dos espaços, das vírgulas. Creio adivinhar-lhe pensamentos, sentimentos, e há alguns paralelismos de personalidades e sensibilidades que nos tornam parte de um universo à parte.

A Sónia Correia partilha as coisas que lhe vão na alma em forma de palavras despejadas em cadência suave e constante, com uma elegância que lhe é característica. O talento da Sónia é grande e merece ser reconhecido, divulgado e acompanhado de perto

 

Descalça...

Descalça subiu no vento, procurava um propósito que não fosse o de ver os ponteiros do relógio correrem pelos números, a esgotar o tempo, tinha perdido a bagagem, ao seu redor deixou de sentir o calor dos tantos que a decepção sangrou em sulcos, passaram anos desde então.

Entre a morte do desespero e os escombros da vida partida de lágrimas, ácidas sem rumo, aceitou arrumar os despojos e guardou todos os sapatos de princesa, ficou sem chão, viu o castelo ruir, não foi feliz, ou foi, tantas vezes quantas acreditou nesse reinado que ainda hoje lhe lembra o lado dócil, o mesmo que detonou dentro dela a explosão e deixou vazios os baús.

Hoje anda descalça, faz anos que congemina o plano da ascensão, enquanto serve outros castelos no lugar de gata Borralheira que aceitou temporariamente resignada, barafusta sozinha mas aceitou que não há justiça em todas as coisas.

Não morreu, pelo contrário, os olhos dela vêem beleza onde nunca antes a encontrara, a simplicidade humilde educou-a no caminho mais íngreme e em segredo tem traçado um lugar no mundo que esboça nas nuvens e cumpre em segredo.

Não é mais a mesma, nunca mais o será e ainda assim, mesmo descalça, sem palácio ou carruagens pomposas, hoje é mais ela do que alguma vez fora, sorri por tudo e por nada.

A diferença está no fazer acontecer porque descalças são tantas as almas que vagueiam sem força para transformar as abandonadas muralhas em libertação... Ela, enquanto respirar terá sonhos, mares para aconchego, praias extensas de esperança, estrelas que lhe brilhem os olhos e obstinada mesmo que sozinha, caminhará descalça em busca da luz.

E um dia, num livro, caderno ou bloco, ficará gravado para espanto dos que a deixaram na distância e silêncio, que nela perderam a fé, que a não acompanharam no caminho descalço, que nem uma migalha lhe estenderam, para esses que no acaso a reconhecerem, será rainha do sentimento, reflexo da mudança e da libertação das amarras.

Para ela, e só para ela... Um dia governará o orgulho humilde do tanto erguido tão somente através de um coração leve, uma mente livre, a alma contente constantemente e o reflexo no espelho de um todo transparente.

Tudo o que quer depois é uma cadeira à beira mar, descalça de pés na areia, um caderno, um lápis... e tempo sem relógio para vos contar de todas as loucuras que lhe nascem e das histórias que fazem dela um sucesso ainda que seu.

Fechou os olhos no cansaço e adormeceu... A paz tapou-a e preparou-a para sonhar de novo... Chiuuuuuuu!

A rubrica "Ventania convida" tem estado espaçada no tempo, mas não ausente, e regressa com uma autora que já sigo há algum tempo, apesar de a ter descoberto um pouco por acaso e mais por proximidades virtuais políticas do que outra coisa - acasos que acolho com um sorriso de gratidão.

A Maria Jorgete Teixeira tem o coração e a margem do lado certo e isso trespassa fluidamente para a sua poesia resoluta e interventiva. Já tem dois livros publicados, pela editora Alfarroba: “O coração é puta sempre à espera” (2015), prosa poética e "“Mulher à beira de uma largada de pombos” (2017), contos inspirados em canções do Zeca Afonso.

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Deixo-vos o poema que a Maria Jorgete escolheu para honrar este blogue, minúsculo à beira do seu talento, e a incumbência de irem visitar a sua página de Facebook, Margem Inquieta.

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A menina que há em mim dorme ao relento
Perdida no vento
À espera da asa
do anjo que a rejeitou
 
À procura
De um desejo largado de uma estrela
De uma pérola de ternura
De uma voz embalada no cabelo
do odor do rosmaninho nas gavetas
 
A menina que há em mim
Ficou sentada no pial da infância
Onde começou a mágoa
enjeitada de si
Perdida no escuro
no canto dos beijos silenciados
amarrotados em lenços
onde se assoa a tristeza
 
a menina que há em mim
vive à espera
que lhe estenda
a minha própria mão.

O meu amigo João Morais está prestes a lançar o seu segundo álbum de originais e, a julgar pelas pérolas do primeiro, será imperdível.

Ainda não escutei uma canção do João de que não gostasse muito. O ritmo de Bossa Nova e samba em português lusitano, a harmonia melódica e irrepreensível, com uns laivos de jazz, os poemas extraordinários e os instrumentais requintadamente deliciosos.

Ouçam, deixem-se viajar pela sonoridade doce e inquietante e sigam de perto a carreira do João, que tem tudo para explodir! Se gostarem tanto quanto eu, divulguem, que a boa música deve ser partilhada.

página de Facebook e o canal no Youtube do João esperam a vossa visita. 

 

 

 

Para dar as boas-vindas ao mês de Agosto, em plena silly season, inicia-se aqui uma rubrica de autores convidados, que tenho o orgulho de arrancar com a poesia de uma amiga querida que nunca vi, nunca abracei (ainda), e que nada tem de silly. Queria começar assim, pelo puro prazer das palavras, sem mais amarras, sem expectativas e sem compromissos. Gosto da poesia da Susana Nunes porque é realmente isso mesmo: pura. Despretensiosa, descomplexada, leve, às vezes leviana, nunca oca. Quando a Susana escolheu este poema tive ainda mais certeza de seria o momento ideal para esta casa vestir as estrofes alheias, medidas às cegas, e que assentam que nem uma luva. Nem por encomenda seria mais adequado. Vão conhecer a Susana e deliciem-se! 

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Se calhar

Se calhar, não tive voz que chegasse
e por isso, tu não ma ouviste
Se calhar as letras deviam ter sido escritas a negrito
ou então as palavras estavam esbatidas
não foram de todo, as suficientes
e talvez por isso
mas não sentiste

Quando por fim
consegui proferi-las claras
cheias de frases sonoras
e de versos audíveis em ecos de montanhas
... estavas longe
e nas horas abertas
em que juntei os meus poemas
e os desfolhei nos livros aos ventos
... tinhas curvado a esquina
e claro, não mas encontraste

Agora...
Tenho sal a mais nas lágrimas
tenho paladar amargo p'ra mim
e p'ra mais uns centos
e só me apetece gritar alto
e voltar ao início
em que a minha voz era rouca e pouca
mas ainda conservava a esperança
que te voltasses dessa terra dos silêncios
sem morada
sem caminho
sem estrada que eu soubesse...
... e mesmo de longe que fosse
me dissesses...
- Espera pela minha voz, morena
vou dar-ta, meu amor, de uma assentada
espera... que já não demora...
nada mais há, que eu queira tanto...
... e ai, como vai... valer a pena

Susana Nunes 12 / 6 / 2018