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Ventania

Na margem certa da vida, a esquerda.

Ventania

Na margem certa da vida, a esquerda.

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“Dizer mentiras é feio!” - ensinamento incontornável dos adultos às crianças pequenas, tentativa de reprodução dum parâmetro moral nas mentes dos mais pequenos. Contudo, fá-lo em simultâneo com a instalação de uma série de mentirinhas aparentemente inofensivas, a bem de um imaginário fantasioso comum, ditado pelos costumes de narrativas vagamente educativas, como a existência de um Pai Natal que premeia crianças bem comportadas (mas que no fundo premeia as privilegiadas), fadas dos dentes e bichos papões. De seguida ensina-se as crianças a não dizer todas as verdades, que podem ser incómodas, embaraçar os adultos ou chocar os interlocutores: “isso não se diz!”, “mostra respeito!”

Portanto, sob o escudo da retórica moralista defensora da verdade, desde pequenas as crianças são ensinadas, pelo exemplo e pelas inúmeras mensagens contraditórias, que devem omitir e mentir para se encaixarem na norma, para não serem malcriadas, para não serem confrontativas e como sinal de respeito.

A mentira é uma constante da vida. É mais cómoda do que verdades inconvenientes, evita diferendos e atritos, faz promessas impossíveis, ganha eleições. Como uma capa de camuflagem que esconde a verdade feia e protege das verdades alheias.

Mais do que uma arma, a verdade desarma os outros. Incomoda, porque é, muitas vezes, inesperada. Outras vezes, demasiadas, porque magoa, e magoa os mais próximos, os que mais se deseja proteger. Ser brutalmente honesto pode ser uma maldição. Ser adepto da verdade absoluta a todos os momentos pode entrar em contradição com o conceito útil, que se vai adquirindo com as tareias da vida, de verdades desnecessárias. Opiniões que ninguém pediu, informações supérfluas, se só vão servir para magoar ou perturbar alguém, ou considerações que não trazem nada de positivo, são mais benéficas mantidas em silêncio.

Mas as mentiras, essas são corrosivas, qualquer que seja a sua envergadura. Fétidas e de pernas curtas, vão arrastando pelo caminho os que se aproximam, vão-se encrustando cumulativamente, camada sobre camada, como sujidade que se acumula ao longo do tempo, de tal forma que já não se consegue ver a superfície real. Uma mentira fininha por educação, outra mais espessa para não ficarem com a ideia errada, outra pequenina porque nos pediram segredo, outra camada mínima para evitar o confronto…

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Mesmo sem má índole ou segundas intenções, a verdade torna-se tão distante e inverosímil que chega a ser divertido que tantas pessoas tenham dificuldade em acreditar nas verdades que lhes são atiradas a sangue frio. As verdades inesperadas, que chocam, aquelas que são frequentemente maquilhadas com mentiras, são tantas vezes recebidas com gargalhadas nervosas, inseguras, incrédulas, como piadas e como falsidades. Quando se reforça e assegura que não há nada de falso nas inéditas afirmações, assume o lugar o espanto, o receio, eventualmente a consternação. E fica a verdade como um incómodo que é preciso explicar, justificar a fundo. Fosse uma qualquer balela evidente e seria aceitável com tranquilidade.

No fundo, o que falta não é só a exposição da verdade sem tabus. O que falta acima de tudo é capacidade de encaixe, de lidar com o confronto com algumas verdades, com a distância entre as expectativas e a realidade. Não somos (especialmente os povos latinos) formatados para lidar com a frustração ou para reagir racional e friamente, mas antes a evitar causar frustrações aos socialmente próximos. Mesmo que para isso seja necessário suavizar a verdade com as universalmente aceitáveis little white lies, aparentemente inofensivas, mas que contribuem para uma realidade assente numa pilha de máscaras globais.

O desconforto da mentira fica só com quem mente para não ofender os restantes, que se sentem ofendidos com a dívida de verdades. Será a mentira um gesto de sacrifício, abnegação ou indulgência? Ou talvez seja o comodismo que faz perpetuar as mentiras e a aceitação social das mesmas. Talvez seja demasiado difícil, exigente, cansativo, penoso ser sempre inteiramente fiel à verdade absoluta. Mas para quem? Para quem fala verdade ou para quem prefere viver num mundo de faz-de-conta a lidar com verdades que magoam e desarranjam os lugares das coisas?

As verdades, mesmo as mais difíceis, só doem uma vez. As mentiras são matreiras, mas sempre descobertas. E aí doem múltiplas vezes: pela mentira em si, pelo acto de quem mentiu, porventura por todos os cúmplices que assentiram, e torna a doer de cada vez que se confronta o que se sabia como verdade e deixou de ser. Dizer mentiras é feio, viver mentiras é indigno.

Aceita-se traições, duas caras e cenários idílicos de paredes falsas a troco de uma paz superficial, de uma aparência esquizofrenicamente divergente do que é real. Aceita-se tolher quem somos e queremos a bem de manter longe os limites de normas que ajudamos a definir. O que temos a perder vale assim tanto a pena? Para que se quer um mundo, relações ou quotidianos impregnados de floreados inúteis e sorrisos falsos, apenas para colher uma ou outra facada nas costas, uma ou outra desilusão e tempo perdido? Tenhamos a coragem de ser objectivos, de ser assertivos, de abrir à luz os lugares de sombras e de enganos.

Qual é o custo da mentira e, mais importante, qual é o custo da verdade?

 

Crónica publicada originalmente no Repórter Sombra, a 03/04.

As massas aplaudem, em êxtase colectivo, mãos cheias de nada. Embalagens bonitas, imaculadas na forma, limpas e ternas, a apelar ao sentimentalismo de veludos redondos, unânimes, consensuais, que a toda a gente cai bem. Eu tenho cá dentro esta maldição do descontentamento, de ansiar pelo que arranha, pelo que irrita, pelo que dói na alma e inquieta. A constatação de factos conhecidos não é estimulante, nem estética nem simbolicamente. O que choca, faz pensar, antagoniza, isso sim, tem o condão de ensinar, de contrapôr, de incomodar, dar náuseas, repulsa. As perguntas sem resposta fácil, os avessos de cada estória, são esses os talentos que me fazem vibrar.

Vôos serenos não ficam na memória. Dêem-me caminhos tortos em terrenos escarpados, lava a sangrar das profundezas, rugidos fora de contexto. Raiva de espumar pela boca, faíscas, suor, chapadões. Sabores picantes e ventos cortantes. Rejeito as emoções almofadadas, suavizadas com açúcar e glacé. 

Dêem-me amor sem filtros, sem capas, amor de tudo ou nada, de gritos e uivos pela noite dentro, dêem-me abraços em brasas, palavras que mordem, beijos mortais.

Desafia-me se me queres ver por dentro. Dá-me só o que sai do âmago de ti, das tripas retorcidas, do que é feio e que sufoca, a tua verdade de entranhas que em mim é poesia.

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Desculpa se quero saber de ti e isso te incomoda. Desculpa inquietar-me com os teus silêncios e zangar-me se desconversas. Desculpa se não me contento com migalhas. Desculpa se te quero dar beijos todos os dias. Desculpa às vezes querer deitar-me ou acordar contigo. Desculpa ver significados nas palavras, as que dizes e as que calas. Desculpa querer partilhar-me contigo. Desculpa celebrar as tuas vitórias com vaidade e orgulho. Desculpa fazer-te rir quando digo que te desejo. Desculpa não querer ser o teu penso rápido descartável. Desculpa dizer-te sempre a verdade e dizer-te verdades que doem e que mais ninguém te diz. Desculpa se embarquei nas tuas fantasias. Desculpa não fazer de ti o meu centro. Desculpa não te deixar desistir de ti. Desculpa corrigir-te quando estás errado. Desculpa não navegar orientada na indefinição. Desculpa que a minha existência te seja penosa. Desculpa que me recorde de tudo o que me disseste. Desculpa não conseguir aliviar-te da tua vida. Desculpa que a minha presença seja um peso nos teus ombros. Desculpa se te aponto as injustiças. Desculpa não fraquejar. Desculpa conseguir respirar sem ti. Desculpa já não ser o que era. Desculpa ter saudades tuas. Desculpa se me pareceu verdade que quisesses fugir comigo. Desculpa se preciso de razões e de porquês. Desculpa ter espinhos e não ser fácil. Desculpa ser pesada. Desculpa ser um fardo. Desculpa eu existir.

Ou então não desculpes.

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Como pessoa obcecada pela verdade de todas as coisas, que faz corresponder à verdade a fidelidade a ideais, valores e talvez até a algum moralismo, é muito raro mentir. Também minto, demasiadas vezes para sentir que cumpra os requisitos mínimos da coerência, mas não o sei fazer, e prefiro sempre dizer a verdade absoluta ou, no máximo, evitar magoar ou prejudicar alguém calando algumas verdades. Defensora da verdade nua e crua, digo muitas verdades que não são levadas a sério. Sou conivente e até causadora de algumas mentiras, que não desfaço por não serem minhas ou o meu lugar.
Penso nisto tantas vezes, debato comigo mesma o potencial destruidor da verdade contra o potencial destruidor da mentira, estudo pessoalmente os indícios de cada pessoa quando mente e, sobretudo ultimamente, tenho-me dedicado a observar as reacções a verdades incomuns.
Chega a ser divertido que tantas pessoas tenham dificuldade em acreditar nas verdades que lhes são atiradas a sangue frio. As verdades inesperadas, que chocam, aquelas que são frequentemente maquilhadas com mentiras, são tantas vezes recebidas com gargalhadas nervosas, inseguras, incrédulas, como piadas e como falsidades. Quando se reforça e assegura que não há nada de falso nas inéditas afirmações, assume o lugar o espanto, o receio (o tal do diferente), eventualmente a consternação. E fica a verdade como um incómodo que é preciso explicar, justificar a fundo. Fosse uma qualquer balela e seria aceitável com tranquilidade.

O desconforto da mentira fica só com quem mente para não ofender os restantes, que se sentem ofendidos com a dívida de verdades. Será a mentira um gesto de sacrifício ou abnegação? Ou talvez seja o comodismo que faz perpetuar as mentiras e a aceitação social das mesmas. Talvez seja demasiado difícil, exigente, cansativo, penoso ser sempre inteiramente fiel à verdade absoluta. Mas para quem? Para quem fala verdade ou para quem prefere viver num mundo de faz-de-conta a lidar com verdades incómodas, que magoam, que desarranjam os lugares das coisas?
Não fosse o quotidiano feito de lugares de sombras e enganos, quantos mentirosos se renderiam? Quantas famílias desmoronariam e quantas seriam erguidas mais alto e mais fortes? Qual é o custo da mentira e, mais importante, qual é o custo da verdade?

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De cada vez que brigamos, ou melhor, que andamos às turras, saio sem perceber se te perdi mais um pouco ou se me dei demais novamente. Quanto mais dou de mim, mais te perco, parece-me. Exigirias de mim, se pudesses, que estivesse sempre presente sem estar inteira, com o coração aberto para não te resfriar. De ti só exijo o que sempre repito, a verdade e respeito. Queres que me passe tudo o que tenho entalado, sem teres ainda percebido que tu não vais passar, tu não podes passar, tu estás-me atravessado na goela, por mastigar, a seco. Bebo mais um copo à procura da solução, mas todas as equações têm o teu nome na incógnita, a tua pele, os teus segredos, tu és a constante incontornável de todas as conversas que ficam por ter, com as palavras todas a nú, erectas e festivaleiras.

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A mentira continua a ser aquilo que mais me magoa e mais me lixa. Em todos os âmbitos.

 

Mesmo as little white lies. Nenhuma mentira é tão inofensiva assim.

Por exemplo, o chefe diz a 50% dos seus colaboradores que são os melhores e os maiores e sem comparação. Pretende motivá-los e escolhe fazê-lo pela positiva, mas excede-se. Em vez de apontar e reforçar os pontos positivos de cada um, diz-lhes, a todos estes 50%, "és o melhor de todos". (Como um tipo dizer às 3 namoradas "és o maior amor da minha vida".) E os colaboradores ficam contentes, todos inchados, de ego cheio. Até ao momento da verdade. Sim, que a verdade descobre-se sempre. E os colaboradores vêm-se preteridos, ou prejudicados, ou passados para trás. E percebem que havia mais meia dúzia na mesma situação, convencidos que seriam a primeira escolha do chefe, ou o braço direito, até os factos o desmentirem categoricamente. (Ou as namoradas apanham o tipo em flagrante a pedir outra em casamento.)

 

Este "balde de água fria" dói sempre muito mais que a verdade nua e crua. Porque mais do que acreditarem em algo irreal, os colaboradores (ou as namoradas) foram feitos de parvos durante um bom bocado. Não só não são os melhores nem os mais bem vistos pelo chefe, como ainda ficam com a certeza que o chefe os acha burros e totós ao ponto de acreditarem... (Ou, não só as namoradas foram todas encornadas como o tipo ainda acha que são tão parvas que nunca iriam descobrir.)

 

Acredite-se, a verdade é mesmo a melhor política.

Cada pessoa tem um número de mentiras bem definido para gastar na sua vida, e o mesmo se pode aplicar às metáforas que diabólica e sorrateiramente assaltam a demência criativa do escritor. As duas poderão ser simultâneas e compulsivas, logo não desprovidas de sinceridade. Como as pessoas más podem ser fracas ou fortes, mas pessoas boas são sempre fortes, de que modo estabelecerias uma ponte entre a metáfora, a mentira, a sinceridade e tu mesma?




A ponte do meu âmago para a mentira está por descobrir, que me causa inegável repulsa sob todas as formas. Concebo, sim, representar um papel distante de mim, que terei feito em ocasiões distantes e cuja infelicidade profunda que me causei mais reforçou a necessidade de verdade, quase como uma adicção. Desconfio que quem mente não é feliz. E eu sei que não sou feliz com mentira a poluir-me o sangue, ou a vista, for that matter.


Sendo que as verdades de cada um mudam consigo e com o ponto em que se encontra - é natural que assim seja porque a própria verdade da realidade que percepcionamos é lida de múltiplos ângulos e, assim, cria uma multiplicidade de verdades - e que raramente coincidem com as verdades alheias, a não ser em tratando-se de verdades factuais e verificáveis globalmente, a própria definição categórica que adiantes, de pessoas boas e pessoas más, é permeável, no mínimo. Não há pessoas sempre boas nem pessoas sempre más, há sim pessoas de essência pura e generosa e pessoas de essência egoísta e invejosa (substitui os adjectivos pelos que melhor sumarizarem a tua experiência pessoal).


Ou seja, a relatividade é uma constante até da verdade. A minha verdade pode não ser a tua e vice-versa, o que não significa que um de nós esteja a mentir. É desta percepção que nasce a tolerância e compreensão perante os outros. Não mentir é ser fiel à tua verdade. É em cada momento agires e comunicares exactamente o que pensas e sentes. Ainda que saibas bem que passada uma hora possas discordar de ti próprio. Aqui entra a capacidade de controlar a impulsividade (que tanto me falta e a outros sobeja). Falta-me porque não me rendo à verdade que exista daqui a uma hora, porque aqui e agora não tenho como escapar ao meu crivo interno de autenticidade, que me impele e me ferve, me mantém viva.


Deixei as metáforas para o fim, como uma criança gulosa, porque são as minhas preferidas. E são-no pela absoluta sinceridade que não se transmite de nenhuma outra forma. Muito mais que um simbolismo inerente e as vastas possibilidades de interpretações pessoais que oferecem, mais que a beleza com que os mestres as desferem, as metáforas são, elas próprias, verdade. Repara como alguém se  identifica com as características que encontra, por exemplo, numa ventania. Uma metáfora apresenta um carácter bem mais amplo, livre, capaz de evoluir e permanecer, que uma mera descrição, um nome, e só encontra caminho para instalar-se (mais que nascer) nas palavras dum escritor através da sinceridade. Doutra forma, não passa(ria) duma coxa tentativa de forjar figuras de estilo sem identidade, mal semeadas.


E, dizia o Kundera que o amor nasce de metáforas. Sei que sim. Sei duma paixão muda que nasceu de mãos que se tocavam sem se procurar, dum amor que pegou em duas noites estreladas e atou-lhes um nó sem tempo, sei de flores silvestres que brotaram das asas azuis de pássaros perdidos. E esta é a Verdade, esta sou eu.


 


 


 



 


 


 

A primeira pessoa que me recordo vivamente de ter-me mentido foi a Lurdes. Pequenina e franzina, muito branquinha, com cara e cabelo de boneca, cheio de canudos. Chamávamos-lhe Lurditas. Éramos amigas desde a 1ª classe e isto aconteceu no 5º ano. Já não me lembro exactamente de qual foi a mentira, ou até se foi uma mentira sobre mim dita a terceiros em vez duma mentira que me tenha dito a mim. Não interessa. Interessa a parte de que nunca me esqueci. Fiquei magoada, desiludida, ultrajada. Como podia alguém de quem gostava tanto, em quem confiava, com quem ria e brincava, alguém que eu ajudava e protegia como podia, ter um acto tão vil para comigo? Lembro-me do sítio exacto do recreio da escola onde lhe disse que tinha descoberto e informei que não pretendia ouvir-lhe novamente a voz dirigida a mim. As duas de olhos mareados. Eu muito zangada. Penso agora que aquilo a que chamam mau feitio possa ter nascido muito antes da adolescência, esse bode expiatório para as decepções que causamos nos outros, esse chiar duma torneira que se abre nesse instante e não seca jamais. Passaram-se dias ou até semanas. Quando a Lurdes falava para o grupo, eu não respondia, olhava para o lado, nem sequer era capaz de rir da melhor das piadolas. Doía ainda a traição. Ela esforçava-se, eu sei que sim, na esperança de eu esquecer-me da zanga, de me deixar ir e voltar a chamá-la de amiga, voltar a caminhar com ela, voltar a dirigir-lhe um “olá” que fosse. E eu, irredutível. Depois houve uma manhã, antes de começarem as aulas (de Inglês, com aquela “stôra” de quem eu gostava tanto) e antes de chegarem mais colegas, em que a Lurdes veio ter comigo. Pediu-me desculpa. Dei-lhe uma resposta qualquer na 3ª pessoa (distante e altiva, como só sei ser se estiver magoada), mas assentindo. Sim, podíamos voltar a ser amigas. Sim, eu também tinha saudades da minha amiga. E sim, tornámos a falar e a rir e a brincar. Mas a essência do que nos unia, a pureza que tem uma amizade sincera, essa ficou manchada. Nunca mais voltei a confiar na Lurdes. Nunca mais lhe contei um segredo. Ia às festas de anos dela. Jogávamos ao elástico, desenfreadamente. Aos países, até à exaustão. Mas nunca mais foi como era. Nunca mais podia ser. Porque há coisas que podemos perdoar, mas não esquecer. Não esqueci, passados tantos anos, passados tantos guiões de aventuras e dramas tão mais possantes.


Há coisas que nunca mudam.


 


 




Há a malta que encolhe os ombros. Que se entrega ao conformismo. Normalmente são os que dizem que a vida “vai andando”. Malta que se queixa que não pode, que não tem, que nunca vai, que é difícil, que dói aqui e acoli. Malta que se escuda no “não sou capaz”, no “eles é que mandam”, no “são todos iguais”. Porque tem espinhas, porque tem casca, porque tem osso, porque tem côdea, porque está frio, porque está calor, porque é tarde, porque é muito cedo, porque dói a barriga, porque são horas de jantar, porque joga o Benfica (aqui no final, claro plágio aos Deolinda).


E tu, és dessa malta?


E que tal ser diferente? E que tal arregaçar as mangas e começar a diferença aqui e agora? Se queres um mundo diferente, faz a tua parte. Todos juntos somos mais, somos maiores, podemos mais, podemos tudo. Muda o teu mundo. Transforma o que podes em teu redor. Não podes, sozinho(a) acabar com a fome no mundo, mas podes pagar um hamburguer a um sem-abrigo. Ou podes ajudar o Banco Alimentar contra a Fome. Não podes reverter as emissões de CO2 sozinho(a), mas podes andar a pé em distâncias curtas, preferir produtos locais e poupar energia. Não podes sozinho(a) impedir a fuga aos impostos, mas podes pedir (ou passar) facturas. Não podes acabar com todo o crime, mas podes denunciar os que testemunhas. Não podes sozinho(a) limpar a tua cidade, mas podes não sujar e ensinar alguém. Não podes adoptar todas as crianças sem protecção, mas podes dirigir uma parte dos teus descontos de IRS para a AMI ou a Unicef. Não podes evitar todos os maus tratos para com as animais, mas podes assinar uma petição a pedir alteração na legislação. Não podes mudar sozinho(a) a governação do teu país, mas podes votar em quem acreditas. Não podes abolir toda a violência, mas podes não recorrer a ela. Não podes mudar tudo o que está mal, mas podes reclamar. Não podes acabar com todo o sofrimento, mas podes oferecer sorrisos.


Podes não conseguir realizar todos os teus sonhos do pé para a mão, mas podes não desistir e lutar por eles.


São os pequenos passos. Muitos passos pequenos fazem-nos chegar tão longe quanto quisermos. São as pequenas coisas. Muitas coisas pequenas fazem uma imensidão.


Faz a tua parte!


 







 

Nem sempre só faz falta quem está. Às vezes parece-nos que faz muita falta quem não está por não querer estar. Parece-nos, porque às vezes deixamo-nos viver numa ilusão de que o que era bom era o que já tivemos e nunca vai ser tão bom se não tivermos. Queremos acreditar, porque a saudade é um bicho que nos habita e não arreda. A saudade é só saudade, é necessidade de voltar a sítios onde nos achámos inteiros. Mas nunca pode ser uma sentença de não mais tornar a ser inteiro noutro sítio diferente. Pode até não tornar a ser tão bom como já foi, mas pode ser melhor (a retórica ganha). Sem largarmos as ilusões como podemos sentir as luzes que cintilam e são uma realidade (mesmo que irreal)? Se sentimos, tornámos a acreditar. (Tornámos a acreditar.) E isso significa que sabemos olhar as ilusões nos olhos e dizer-lhes "vai-te embora." Não queremos mundos de mentira e sem conteúdo. Não queremos mãos que se procuram se procuram encher a ausência de outras mãos. Não queremos beijos falsos. Não queremos nada se não for de verdade. E queremos a verdade toda a pulsar nas mãos.




Ela não mente, tem uma incapacidade fisiológica de mentir, como se o soro da verdade lhe pingasse em permanência da supra-renal. Como ela gostava de saber mentir e calar! É por isso que ela só não responde se está perdida numa névoa qualquer. É por isso que precisa de espaço para gritar as dores e os amores. É por isso que não ignora se não fica indiferente.


É o pior dos defeitos, nunca deixa ninguém impune com aquelas lanças afiadas de verdade. Na ponta de ferro que entra pele adentro, coexistem todas as incongruências. Nos beijos, a mágoa; nas lágrimas, o desejo. Tudo na verdade do que se percebe e respira, entra no sangue como um veneno, sem antídoto, que só aos puros permite que se mantenham erguidos.


Transparente como o vento, essa miúda de intensidades descontroladas. Solitária, numa floresta de cadáveres verdes e desfalecidos aos seus pés.


Este eco que ouve ao fundo, será real ou a sanidade por fim a dar-se  por vencida?