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Ventania

Na margem certa da vida, a esquerda.

Ventania

Na margem certa da vida, a esquerda.

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Não sou a maior fã de fazer balanços ou da perspectiva contabilística da vida. Não gosto de fechos, ou de despedidas ou de finais. Gosto de inícios, de estrear cadernos, sorrisos, beijos e emoções, com todas as possibilidades em aberto, gosto da aventura do desconhecido a seguir a cada esquina da vida num lugar estranho, sem mapa nem destino.
Apesar de fugir dos clichés em geral, nomeadamente do balanço de fim-de-ano, dei por mim a reparar que, ultimamente, os meus ciclos pessoais têm colidido com Dezembros e Janeiros. Os últimos 12 meses têm sido de uma intensidade que me esgota e que me arrepia de expectativas. Estou grata, muito grata, pelo que (e, sobretudo, por quem) de bom e maravilhoso tem surgido no meu caminho e tem vindo ter às minhas mãos, desde que aprendi a aceitar mais e a duvidar menos.
Têm chegado desafios muito bons, que tenho agarrado pelos cornos, ainda que com os joelhos a tremer num par de ocasiões. Ainda não me arrependi, até porque só costumo arrepender-me do que não faço.


Já sabia desde sempre que ninguém combate as nossas lutas por nós, não as podemos deixar para outros porque não há outros; quem acredita num mundo melhor tem de se pôr em marcha e ir desbravando terreno. Este foi o ano em que arrepiei caminho num lado (mais) acertado. Fazer estas lutas ao lado de camaradas como os que me ladeiam tem sido um enorme privilégio, uma aprendizagem incrível, e faz a diferença entre o desepero de achar que se está sozinho e acreditar que juntos vamos conseguir. Ocupámos as ruas, tocámos nas feridas,  desafiámos opressores, gritámos por direitos e pela justiça, e vencemos algumas batalhas. No sindicalismo, no feminismo, no anti-capitalismo, na justiça climática e ambiental, pela igualdade entre todos e contra todas as opressões, somos muitos, somos sementes e faíscas e, pese embora a luta jamais se adivinhar ligeira, a certeza da inevitabilidade da vitória vai ganhando espaço, fincando pé, criando raízes profundas.

Foi este ano que a escrita tomou um tom mais sério, que deu pequeninos frutos de papel, esquissos que serviram para definir por onde me vejo e desejo e por onde não quero ir. Foi neste ano que reconquistei sozinha um espaço em que posso ser sempre quem sou, e que trouxe entre as páginas amigos especiais, posso mesmo dizer excepcionais, que me leram o coração escancarado e os pensamentos trancados a sete chaves, as minhas verdades que faço explodir em festim e os segredos indizíveis soltos nas entrelinhas.

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Não foi sempre bonito e leve. Este ano chorei como já não chorava há muitos anos. Chorei de cansaço e de tristeza, de desespero. Passei noites em claro, perdida, sem saber o que fazer para não permitir que pessoas que amo se perdessem; afastei, aproximei, esgotei as palavras e os silêncios, dei tudo de mim. Fiquei fisicamente (mais) doente com maleitas da alma, com o coração a querer sair pela boca, quase literalmente. Perdi Amigos sem perceber bem porquê. Perdi a vontade de viver - e não há forma eufemística de dizer isto. Encontrei amparo nos pontapés que me deram quando já estava no chão e me obrigaram a reagir. Foi só quando me trataram como louca que percebi que não tinha perdido a sanidade. Encontrei guarida e conforto nos colos que sempre me acolhem com amor, ainda que o sempre não tenha anos plurais. Encontrei Amigos espantosos em lugares insuspeitos, e outros em lugares mais do que prováveis. Fiz planos, cumpri planos e alterei os planos.
Chorei comovida de emoções transbordantes, sem outro lugar por onde escorrer, quando me ofereceram poemas e tive a certeza de que aquele amor espinhoso e enjaulado seria eterno. Encontrei Amor genuíno nos antípodas e num reflexo que quase podia ser um espelho. Foi este ano que realmente multipliquei o Amor em amores mais que perfeitos. Respirei poesia, dei-lhe a mão, deitei-me com ela e dormimos abraçadas em suspiros ofegantes e surreais, de dedos entrelaçados e cabelos desgrenhados.

Fui, sou inteira, de punho em riste e coração ao alto, fractura exposta do esqueleto da alma, blindada à prova de medo, brava e agreste e intragável. 
Não carece de cálculos matemáticos a constatação de que 2018 foi um dos melhores e um dos piores anos.
Afinal, apesar dos desfalques que as mágoas levaram a cabo, este ano consegui passar uma boa parte do meu tempo a fazer aquilo que sempre quis. Aprender. Amar. Escrever. Lutar. Aprender mais. Amar mais. Escrever mais. Lutar mais. Cresci. Ousei. E nunca, nunca, me resignei.

O meu elemento é o ar (o nome do alter-ego não é acaso). É onde me sinto mais em casa, com alguma distanciação do terreno e do material. É lá por entre as nuvens que me encontram a divagar, muitas vezes a construir castelos ou a conversar com os pássaros. Sem pesos nem amarras, num mundo alternativo.

É nesse plano que os encontros de pernas para o ar fazem sentido, sem norte nem sequência. Pode-se começar do fim e remar montanha acima, sem prestar contas a ninguém. 

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Shiva é o deus hindu da destruição, complementado na mesma medida pela energia feminina e criativa de Parvati, deusa do amor e da génese de tudo, que gera inícios e recomeços. Juntos, potenciam a transformação do universo. O tridente de Shiva destrói a ignorância humana. O fogo e a força contida de touro transforma tudo aquilo em que toca. A verdade é vista pelo terceiro olho, o que vê além do visível, além do óbvio e do palpável, o que vê por dentro, o que sabe as coisas que ninguém lhe ensinou.

À vez e sem supremacia, encarnamos Shiva e Parvati, duas faces complementares e idênticas da energia que cria e destrói, em sucessão, como um jogo de berlindes com planetas e satélites irrelevantes na vastidão.

Senhores dos animais, com quem conversamos por falarmos a mesma língua, por nos assumirmos bestas sem redução antropocêntrica, por comungarmos da mesma energia pura e naive.

Por vezes atiramo-nos bolas de fogo, queimamos excessos e estilhaçamos de seguida em harmonias que dispensam ensaios.

Assim somos seus reflexos. Rebentamos em cada epílogo para logo encontrar um meio de nos reescrevermos. A morte não nos merece atenção além da atracção pela finitude, mas a explosão da ordem numa festa barulhenta de fogo e fumo diz poesias que encerram a promessa de inícios melhores, do final de sofrimentos e de perversões; a promessa de liberdade que trago tatuada. Sem donos, sem amos, sem contratos que não assinei a tolherem-me as ganas.

Anseio pelo momento do cogumelo nuclear que me apague a existência, a história e a memória. Salivo por esse instante em que tudo já não exista para de novo nascer, em paz, sem dor nem lembrança, metade pura do resto que procuras. Pego fogo a cada acha e cuspo-lhe gasolina. Magoa-me, corta-me até ao osso, descarna-me como presa nos teus dentes tingidos do meu sangue. Derrota-me cada suspiro, destrói-me outra vez. A fénix chamuscada há-de desistir dos vôos picados, exaurida. Penas de lume como fagulhas bailam no canto da noite sem grilos. Estrelas cadentes e fumo. Fim.

Ando com a cabeça em falência técnica e a escrita talvez tenha de ficar em pausa um bocado, mas a simpática Maribel Maia, do blogue Educar Com(Vida), passou-me esta “batata quente”, que me parece um bom pretexto para enxotar as moscas do blogue e para os potenciais leitores perceberem que atrás do pseudónimo está uma pessoa real, de carne e osso, com momentos e problemas e gargalhadas, com falhas e altos e baixos. Um bocadinho de mim, sem máscaras.

 

1 - O que mais odeias em ti?

Tudo, mas no topo da lista está a minha incapacidade de não deixar transparecer o que penso e sinto, e a constante necessidade de falar de tudo o que me incomoda, não deixar nada por dizer.

 

2 - Peso

Demasiado. Costumo dizer a brincar que é “peso intelectual”, mas não só não é como é uma manobra de diversão de um tema que me incomoda e fragiliza.

 

3 - Se pudesses visitar qualquer lugar no mundo onde é que irias e por quê?

Nova Zelândia, porque é um destino de sonho e com o qual tenho vindo a sonhar nos últimos tempos. E também todos os sítios do mundo que ainda não conheço.

 

4 - A última coisa que te fez chorar

Uma desilusão das grandes, em crescendo, há umas horas.

 

5 - Se pudesses voltar atrás no tempo, o que mudarias?

Só me arrependo do que não fiz. Não teria fugido um par de vezes da inevitabilidade.

 

6 - Eu não vou morrer sem…

escrever um livro.

 

7 - Quanto tempo levas para ficar pronta para sair?

Desde que acordo até sair a porta, em circunstâncias normais, 40 minutos.

 

8 - Último lugar em que estiveste

Passei o fim-de-semana no Liceu Camões, em Lisboa, a participar dos IV Encontros Internacionais Ecossocialistas, a ouvir gente que partilha do meu sonho de transformar o mundo num lugar justo e sem opressões.

 

9 - Comida favorita

Sardinhas assadas, polvo à lagareiro, leitão assado, sopa da pedra, feijoada, chili com carne. Queijo de qualquer tipo. Nectarinas. Figos. Dióspiros com canela. Presunto.

 

10 - Comida que não comes de forma alguma

Pimentos e cartilagens de bichos.

 

11 - Música do momento

Acho que chegou a hora - Tiago Bettencourt

 

12 - Vivo perdendo…

a calma. :(

 

13 - Uma frase…

A luta continua!

 

14 - Último concerto a que foste…

David Fonseca no Coliseu, comemoração dos 20 anos de carreira.

 

15 - Última mensagem no whatsapp

http://camp-in-gas.pt (visitem também e subscrevam a newsletter!)

 

16 - Última vez que te stressaste

Há umas horas.

 

17 - Tira uma selfie e mostra

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18 - Uma música com a palavra AMOR

O Lugar - Tiago Bettencourt

 

19 - O que é feio, mas que tu achas bonito?

Quem o feio ama, bonito lhe parece. Acho as bichezas todas lindas e fantásticas, das ratazanas às aranhas, escorpiões, raias e escaravelhos, tudo!

 

20 - Mostra a última foto do teu instagram

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21- Uma frase que a tua mãe diz sempre

“Gosto muito de ver este artista a trabalhar!”

 

22- Eu estou...

tão cansada...

 

23 - Eu sou...

uma revolucionária, aventureira e viajante presa na vida de uma assalariada mal paga.

 

24 - Eu quero…

aprender tudo o que possa, quebrar as correntes que oprimem a minha classe e fazer alguma diferença positiva nas vidas das pessoas com quem me vou cruzando.

 

25 - Ser amigo é...

uma definição que devia rever para conter as desilusões. Ser amigo é amar o outro por quem ele é, é partilhar os fardos pesados E partilhar também os momentos de alegria e celebração, é dizer sempre toda a verdade, é aceitar os erros e dar apoio mesmo quando não se concorda com as decisões do outro, é dar raspanetes quando é preciso e dar abraços sem reticências. É fazer bem ao outro e não permitir que a vida desgaste os laços.

 

26 - Quando morreres...

as dores vão dar tréguas.

 

27 - Um livro:

O Memorial do Convento (ou todos), do Saramago, sempre. Incontornável. Os capitães da areia, do Jorge Amado, outro romance life-changing. Qualquer um de contos da Alice Munro.

 

28 - Um filme

Cidade de Deus, do Fernando Meirelles.

 

29 - Uma meta a cumprir este ano

Chegar aos 2.222 seguidores na página de Facebook, sem sponsors!

 

30 - Queria ser uma formiga para…

ver de perto pormenores que me passam despercebidos e ter finalmente um exoesqueleto protector.

 

31 - Calças ou vestidos?

Jeans.

 

32 - O que te faz feliz na TPM?

Abraços e chocolate negro.

 

33 - Ser feliz...

É preciso tão pouco para ser feliz, e às vezes é tão difícil conseguir esse pouco.

 

34 - Queria ser...

mais forte, mais fria, mais alta, mais bonita.

 

35 - Queria ter...

Saúde.

 

36 - Se eu fosse homem (mulher)...

Poderia usufruir de todos os privilégios de que os homens (sobretudo os ricos, brancos e hetero) usufruem sem dar conta de serem privilegiados. Ganhava mais. Tinha mais leitores. Podia sair sozinha para a rua ou um bar à hora que eu quisesse, vestida como me apetecesse, beber o que quisesse, sem medo de ser violada, agredida, assediada ou de ser apelidada de oferecida, puta, galdéria...

 

37 - Uma pessoa que tens de/queres conhecer pessoalmente

Os que gostaria de ter conhecido já estão mortos.

 

38 - Cerveja é…

Pão líquido, que me faz inchar como um balão.

 

39 - Na noite passada...

Dormi seis horas ao todo, muito mais do que a média dos últimos tempos. Acordei às 4, andei às voltas na cama, mas ainda consegui dormir mais um bocado.

 

40 - Poderia ficar horas...

A ler, a escrever, a passear a pé por um sitio desconhecido.

 

41 - Uma careta…

língua de fora para fazer os outros sorrirem.

 

42 - O teu lema

In two days tomorrow will be yesterday.

 

43 - Morres de medo de...

Ficar dependente de alguém.

 

44 - Darias tudo para... 

que acontecesse a revolução da classe operária, para que o mundo fosse finalmente livre e justo para todos.

 

45 - O teu maior defeito que é uma grande qualidade:

Sou muito crítica, penso demais e sou muito analítica, o que implica uma auto-flagelação constante mas dá imenso jeito em termos de estratégia e pragmatismo. 

 

46 - A tua maior qualidade que é um defeito:

Sou brutalmente honesta e nunca deixo nada por dizer. Está claro que só me prejudico.

 

47 - Uma blogger que tu admiras e 3 qualidades dela

Uma muito recente blogger (que estreou o blogue Mulher de Papel hoje!), de quem admiro a elevadíssima qualidade literária, a capacidade de parecer serena quando tem a alma em ebulição e a generosidade: Lara Barradas. Sigam de perto. ;-)

 

48 - Que horas são?

17:06

 

49 - 5 palavras com a letra V

Vida

Viajar

Vitória

Ventania

… e o nome do meu pai, que não vou dizer.

 

50 - Indique 5 pessoas para essa TAG!

Não me apetece.

Pequenina, transparente, invisível. Diluída por entre o que brilha faustosamente, por entre a exuberância que te ofusca, sou grão de areia que parece só incomodar, causar desconforto, quando finalmente me sentes debaixo do calcanhar. Um empecilho, uma moléstia, insignificante até magoar.

Acenam-te com luzes, palcos, plumas, folhos e cetins e eu faço questão de não me esconder sob nenhuma dessas máscaras. Não tenho argumentos de monta, atractivos estéticos ou chamarizes sociais, nem sei bem como te detiveste, ao engano, na névoa invernosa que nos atirou para a mesma dimensão. Não tenho glitter nem purpurinas, não cresço em saltos altos nem te lanço escadas para te fascinar com uma inatingibilidade que é irreal. Não sou feita de magias ou perfeições. Sou de carne e sou de osso, de erros e defeitos mil, de cicatrizes e nódoas negras sentimentais. Estou no plano do real, em que o tempo passa, as distâncias doem, as palavras ferem e os silêncios dilaceram. Tropeço, zango-me, faço cara feia quando as lágrimas me apanham de soslaio, babo-me de raiva e de melancolia. Nem a distinção nem a elegância que gostas de ter a emoldurar a tua face visível, mas também ninguém me fez adorno ou bibelot.

Não sou uma mera personagem do teu romance, não deixo de existir quando fechas o livro e passas ao próximo, não me poderás conter em páginas que não te valem a resenha. Não sou a entrada vinte e três na colectânea das poetisas do tule e de coisa nenhuma que escrevem, deslumbradas, desfocadas, sobre o que acham que és tu. Não me contento com definições em versos desconexos sempre na primeira pessoa, extravaso em cada letra das palavras que me deste a custo. O que sou, valho e mereço escapa-te ao entendimento, como escapo eu das tuas teias, dos teus formatos quadriculados cheios de grades e margens e prisões.

Não nasci para ser princesa em contos de fadas, sou proletária, incendiária, de punho sempre erguido, tochas nos olhos e no coração, mestre tanto das fugas como dos choques frontais que te ofendem e te afastam. Não pertenço a este mundo onde cada um é só por si, das sombras e aparências com o verniz a estalar. Talvez deva agradecer-te as desfeitas, evidências inequívocas das palavras em que nunca quis acreditar.

Contra factos não há argumentos.
Não é comigo que celebras vitórias, não é a mim que ofereces convites ou mimos, com quem esbanjas adjectivos e superlativos. Não me ouves quando te grito, na sofreguidão desesperada de querer salvar-te de ti. Não te mereço os sorrisos festivos, as fotografias ou os abraços sentidos, que o meu lugar é na sombra, nos intervalos do que é importante, nos espaços intermédios da vida real que corre em direcções sempre transversais a mim. Nunca me citaste as palavras nem recordas os gestos, que essa sedução em mim não colhe, mas sou eu quem te vê inteiro e em primeiro plano, aqui do alto do meu lugar que é nenhum. A quem iludiste desta vez, quem te preenche as frestas na ilusão de não estares só?

Não sendo jamais urgência nem prioridade, fui (e serei) sempre a que aplaude com mais força cada feito teu, a que na penumbra te ouve e conforta, a que cola os pedaços que outros racharam, com cuspo e com cola de bem querer. Na certeza cimentada de nunca deixar de te incentivar quando perdes a fé, de ir quando chamas, de dar o que não tenho e dar-te tudo, até à última gota do que sou, esgotei o plafond. Um tripé mantido na penumbra para sustentar o truque de magia que és tu. Cansei de só existir enquanto suporte, desnecessária quando te acompanham camaradas das horas boas, dos risos rasgados e festins.

A cada segredo que te adivinho, é sem medo nem pudor que me deixas do lado de fora. O gigantismo do teu coração não se compadece com os meus temores e ainda teima em gelar. Jamais serei animal abandonado que mendiga uma festa de quem não se detém para o olhar. Esbanjas a palavra amizade com quem só te conhece o mel, só para mim despes a capa, atiras a espada, berras e cospes fel.

Colho gargalhadas jocosas onde outros passeiam com excesso de corações pendurados nos bolsos, esquecida e ignorada, silenciada. Alheio às minhas dores e lágrimas colhidas por comboios frios, continuarás o teu trilho, seguro e firme; em cada degrau um grão de areia esquecido. Atrás da cortina onde me cansei de esperar, sozinha, sem tempo de antena, sem direito a nota de rodapé, demorou, mas percebi. "O meu lugar não é aqui." 

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Magnetismo inevitável, talvez. Premonição, dificilmente. Mas um instinto aguçado, do qual duvidavam demasiadas vezes, dizia-lhes quase tudo o que precisavam saber. Ele captou-lhe os aromas de desafio na voz pequenina de veludo e chilreios; na talhada de verdades em betão, a promessa de transpor, de punho em riste, os seus muros e arames farpados para o encontrar do outro lado, inteiriço e solto, liberto no remoinho de que se vai cansando de ser. Ela cumprimentou-o com a familiaridade de quem galgou os séculos a seu lado, vendo-lhe tudo sem nunca o olhar, sem saber que cada um existia de verdade e na certeza estridente que é a dos argumentos de romances perfeitos que se colam à alma e a moldam, a definem como um destino. Ele soube que no seu colo de rola encaixavam os risos e os medos pendentes de permissão, que as suas tempestades, alvoroços e calmarias etéreas cabiam todos entre os braços e pernas tão caseiros daquela morena de olhos turvos, que lhe afagaria todos os gritos emaranhados nos cabelos e que ao sangue dela pertencia, líquido e solúvel por todo o corpo. Evitou os atalhos e disparou um arsenal de flechas ao epicentro do alvo, seguro e certeiro. Ela só estremeceu; fez algumas tentativas de expulsar as setas inquinadas do coração calejado, insistiu até se render à enormidade da cratera que a engolira inteira, de dentro para fora. O vestido remendado da vidente mística, guardadora de segredos e artesã de narrativas redondas, não resistia a cair num só sopro, gesto resoluto e acérrimo, perante o olhar encantado e as mãos gulosas daquele estranho que lhe nascera em rompante de cravos a florir no peito blindado, qual bomba atómica que arrasa os tempos do antes e do depois, semeia só poesia e beijos prometidos em mares chão. Ofegavam, ambos, tingidos por um desejo desastroso de escapar aos contornos castradores das dimensões reais e palpáveis, das impossibilidades que os continham quedos, mudos, agrilhoados.

Passaram duas vidas inteiras a fugir da palavra Amor, como verbo de amar em surdina contínua, como sentença em pena suspensa, como almas penadas a quem os paraísos de passear de mãos dadas e de abraços demorados estão interditos para a eternidade. Depois das fugas com pés descalços nas rochas escarpadas de lâminas cruéis ou nas areias escaldantes dos mais áridos desertos, pulavam para tapetes de bonança e aconchegavam-se com cobertas de ternura e mantos de promessas de nunca mais.

Não conseguiam evadir-se juntos para a terra dos sonhos, cativos que estavam de galáxias apartadas e unidas pelo éter em que se soltavam nomes como âncoras definitivas, pesadas, graves. Boiaram numa jangada imaginária, à tona do mundo, com sonhos por leme, até serem despedaçados por procelas e tormentas grotescas, ignescentes distâncias e ausências.

As palavras às vezes feriam como relâmpagos arremessados contra o casulo de aço e gelo em que ele se encolhia, impotentes mas ruidosas, ecos dos enigmas que ele largava em molduras ferrugentas de paisagens oníricas nunca palpáveis. Ela enlouquecia e arfava de dor com as reticências passivas e os silêncios que lhe lia nos olhos, os beijos retidos, só desenhados no ar. Uma vez achou-se perdida no sorriso de luz que crepitava no lado oposto da sala e sentiu-se a queimar, dissipada, prostrada em cinzas. Terminou naquele instante a sua liberdade de ser outro alguém, de emergir noutra pele renovada, de aprender a viver de outra forma que não nas palavras que ficaram sempre por dizer.

Ouviram as mesmas canções no ombro um do outro até serem consumidos pelo tempo e pela erosão da finitude. Exorcizaram as distâncias soluçadas em sílabas a gotejar em par e permaneceram enleados de verbos e adjectivos, sempre parcos, insuficientes até para delinear os contornos mais desmaiados de um Amor desfocado, a dois tempos, duas faces umbilicais e contrárias da mesma lua destemida e desfigurada. Cumprindo a profecia, permaneceram até ao fim dos dias unidos, um dentro do outro, e isolados, separados pela vida.

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(texto submetido ao Concurso "Até que a vida nos separe", promovido pela editora Papel D'Arroz)

 

Encontro-lhe poemas em cada fôlego, que é das palavras feito e a elas pertence. Abraço-lhe as sombras, danço-lhe os silêncios. Às vezes ficamos de mãos dadas, sem nos tocarmos, a olhar o mesmo nascer-do-Sol, a questionar sentidos e razões. E seguimos, em sintonia muda e que jamais ousa tocar-se, por caminhos apartados e paralelos, até ao último precipício.

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UMA CRIATURA

 

Sei de uma criatura antiga e formidável,

Que a si mesma devora os membros e as entranhas

Com a sofreguidão da fome insaciável.

 

Habita juntamente os vales e as montanhas;

E no mar, que se rasga, à maneira de abismo,

Espreguiça-se toda em convulsões estranhas.

 

Traz impresso na fronte o obscuro despotismo;

Cada olhar que despede, acerbo e mavioso,

Parece uma expansão de amor e de egoísmo.

 

Friamente contempla o desespero e o gozo,

Gosta de colibri, como gosta de verme,

E cinge ao coração o belo e o monstruoso.

 

Para ela o chacal é, como a rola, inerme;

E caminha na terra imperturbável, como

Pelo vasto areal um vasto paquiderme.

 

Na árvore que rebenta o seu primeiro gomo

Vem a folha, que lento e lento se desdobra,

Depois a flor, depois o suspirado pomo.

 

Pois essa criatura está em toda a obra:

Cresta o seio da flor e corrompe-lhe o fruto;

E é nesse destruir que as suas forças dobra.

 

Ama de igual amor o poluto e o impoluto;

Começa e recomeça uma perpétua lida,

E sorrindo obedece ao divino estatuto.

Tu dirás que é a morte; eu direi que é a vida.

 

 

 

Assis, Machado de, 1839-1908

O Almada & outros poemas / Machado de Assis – São Paulo

Globo, 1997, - (obras completas de Machado de Assis) p.126.

A perfeição do céu lilás e laranja enquadra um cargueiro ao largo e algumas gaivotas embriagadas, seguramente vindas de um tasco que lhes permitiu o serviço de tinto em copos de três pela noite fora, vêm dizer "bom dia", estridentes, troçando dos que não têm asas, ou desconhecem que as asas, não podendo crescer-lhes das omoplatas, podem ser criadas com o engenho recto e simples de cortar as amarras que não se vêem, e portanto acreditam que não podem voar. Os passageiros dormentes e condenados à vida rasteira de horizontes míopes deslizam rumo à cidade que amanhece, fresca e solta, sem darem conta de viverem num cenário pintado a óleo com a minúcia delicada e a realidade difusa dos mestres impressionistas. Figurantes de um todo desinteressante, com receio de assumir protagonismos em cada um dos seus filmes, consumidos pelo desígnio da sobrevivência, da subsistência dos seus, chamuscados por paixões interrompidas, por sonhos de que os outros riram, por asas que foram arrancadas com violência logo à nascença, seguem de arrasto, mudos em cacofonia. 

A comoção pela beleza que um apaixonado encontra em cada flor murcha é um luxo de quem não tem úlceras dolorosas no coração. Olhar um momento pela janela dos olhos dos outros, adivinhar os sabores que lhe amargam o palato e os que incendeiam um sorriso, um privilégio de quem não se deixou cegar pela brancura falsa e suja da espuma dos dias que rodam, em sucessão estonteante, até à náusea. Deixar cair uma lágrima roliça de saudade é quase um pecado na cartilha moral. E a inércia, essa puta que desgraça epopeias com borrões de tinta seca, que dá o braço à pálida coragem que se traz de origem e finca os pés na terra, minando qualquer impulso, qualquer pequena fagulha que prometa lábios colados a quem se quer, é movida a medos insuportáveis. De onde se conclui, a cada abordagem, que o medo é o próprio inverso do amor.

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Enquanto comunista, esta é mais uma das posições em que não me revejo, de todo, no que já deixou de ser o meu partido. Situações há em que a divergência de posições existe mas os argumentos apresentados até são compreensíveis. Por exemplo, na votação da lei que permitiria às pessoas transsexuais alterarem legalmente a sua identificação no registo civil caso a mesma não tivesse sido vetada pelo Presidente da República dos afectos-quando-convêm (nem outra coisa seria de esperar de um católico da direita empedernida), o PCP absteve-se mas justificou a abstenção com argumentos sólidos. Continuo a não concordar com o sentido da votação, a ter argumentos contrários, mas aceito.

Já a tomada de posição do PCP em relação à eutanásia (ou morte assistida, como pretendem diferenciar) é lamentável, contrária aos pilares ideológicos comunistas, a defesa da liberdade individual e da igualdade de todos, e que por isso engrossa a lista de razões que me têm vindo a afastar do PCP. [Ou como disse há tempos a uns antigos camaradas, o PCP não me representa - eu sou comunista.]

Afirmar que esta legislação "não corresponde a uma necessidade prioritária para a sociedade" é ultrajante. Na verdade, qualquer argumento que se sustente na hierarquia de causas é, no mínimo, arrogante, injusto e a pior desculpa esfarrapada que se pode dar. Nunca durante esta legislatura se viu o PCP reagir da mesma forma em relação a tantas outras votações - porquê agora? Estará em ensaio uma cisão com o parceiro de coligação, PEV, que não só vai votar favoravelmente as propostas como foi um dos partidos que trouxe o tema a discussão na AR?...

Na chamada dos cuidados paliativos a discussão pública estamos em acordo, é um debate muito necessário, porque é absolutamente vergonhosa a escassez de opções de cuidados paliativos decentes em Portugal (a não existência de cuidados paliativos no IPO de Lisboa, por exemplo). Não creio é que esta discussão deva ser imiscuida com a questão da morte assistida porque como é óbvio (para toda a gente menos para a direita e o PCP) uma não invalida a outra. Ter acesso a cuidados médicos universais e gratuitos para todos é um direito de que nunca deveremos esquecer na luta política. Ter a opção de terminar a própria vida com condições controladas quando esta já se tornou Insustentável e sem criminalizar quem seja requerido para ajudar, também. É uma questão de liberdade individual e de dispor da própria vida e do próprio corpo. Só isso. Eu compreendo o receio de se transformar a eutanásia numa 'sugestão' de terminar os cuidados médicos a um paciente, mas parece-me tão infundado como o receio que era apontado na despenalização da IVG desta ser usada como "método contraceptivo" (como, aliás, advogava a direita). E fazendo de advogada do diabo, reparem que no caso da IVG trata-se de uma (possibilidade de) vida alheia e não da própria (obviamente que a minha posição pessoal sempre foi e será a favor da despenalização da IVG desde que seja essa a escolha da mulher grávida, cuja vontade tem de se sobrepor a tudo o resto, mas estou a estabelecer uma comparação de argumentos).

Toldar as minhas opções relativas ao meu corpo e à minha vida, seja em relação à gravidez, à morte assistida, ao consumo de álcool e drogas ou como e com quem escolho ter relações sexuais, é sobrepor uma vigilância do Estado sobre mim. E mais do que um paternalismo ridículo de me fazerem sujeitar a regras de outrem em assuntos pessoais e íntimos é uma afronta à minha liberdade e à minha capacidade de fazer as minhas escolhas. E isso não pode ser tolerado, jamais.

A agravar a situação, grassa uma sensação que não é só minha de que a maioria, ou pelo menos uma grande parte, do eleitorado do PCP é favorável à eutanásia e esperava maior abertura por parte do partido. Se assim for, é mais um tiro no pé do partido que estava mais bem colocado para ser uma opção de esquerda real, mas que mais uma vez não consegue arriscar libertar-se do conservadorismo, seja por falta de estratégia política e medo de perder algum eleitorado católico, ou por real incapacidade de acompanhar algumas das questões fracturantes do momento em coerência com a ideologia, em consonância com as bases e com uma demarcação clara das posições da direita.

Como pessoa obcecada pela verdade de todas as coisas, que faz corresponder à verdade a fidelidade a ideais, valores e talvez até a algum moralismo, é muito raro mentir. Também minto, demasiadas vezes para sentir que cumpra os requisitos mínimos da coerência, mas não o sei fazer, e prefiro sempre dizer a verdade absoluta ou, no máximo, evitar magoar ou prejudicar alguém calando algumas verdades. Defensora da verdade nua e crua, digo muitas verdades que não são levadas a sério. Sou conivente e até causadora de algumas mentiras, que não desfaço por não serem minhas ou o meu lugar.
Penso nisto tantas vezes, debato comigo mesma o potencial destruidor da verdade contra o potencial destruidor da mentira, estudo pessoalmente os indícios de cada pessoa quando mente e, sobretudo ultimamente, tenho-me dedicado a observar as reacções a verdades incomuns.
Chega a ser divertido que tantas pessoas tenham dificuldade em acreditar nas verdades que lhes são atiradas a sangue frio. As verdades inesperadas, que chocam, aquelas que são frequentemente maquilhadas com mentiras, são tantas vezes recebidas com gargalhadas nervosas, inseguras, incrédulas, como piadas e como falsidades. Quando se reforça e assegura que não há nada de falso nas inéditas afirmações, assume o lugar o espanto, o receio (o tal do diferente), eventualmente a consternação. E fica a verdade como um incómodo que é preciso explicar, justificar a fundo. Fosse uma qualquer balela e seria aceitável com tranquilidade.

O desconforto da mentira fica só com quem mente para não ofender os restantes, que se sentem ofendidos com a dívida de verdades. Será a mentira um gesto de sacrifício ou abnegação? Ou talvez seja o comodismo que faz perpetuar as mentiras e a aceitação social das mesmas. Talvez seja demasiado difícil, exigente, cansativo, penoso ser sempre inteiramente fiel à verdade absoluta. Mas para quem? Para quem fala verdade ou para quem prefere viver num mundo de faz-de-conta a lidar com verdades incómodas, que magoam, que desarranjam os lugares das coisas?
Não fosse o quotidiano feito de lugares de sombras e enganos, quantos mentirosos se renderiam? Quantas famílias desmoronariam e quantas seriam erguidas mais alto e mais fortes? Qual é o custo da mentira e, mais importante, qual é o custo da verdade?

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Meu coração doido é pólvora, explode em festim desregrado à ignição certeira.

Meu coração despedaçado, espalhado em granulado pelo mundo,

não tem poiso quieto nem caminhos pavimentados em que deslizar.

Meu coração gelado, pingado a cada ebulição,

contido em caixas estanques para não evaporar.

Coração bravio, valente e solto, ousa desafiar regras que ninguém ditou.

Meu coração pachorrento, encostado a cada lugar,

derretido em poemas e canções de embalar.

Coração perdido, vagabundo e trôpego, embriagado de sal e de vinho a sangrar.

Coração vadio, disputa com o vento a leveza e não sabe aterrar.

 

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Podes não saber ou não querer saber, mas quero eu saber de ti. Podes lutar contra o afecto que não sabes retribuir, mas precisas dele como de ar para respirar. Como te pode faltar o que tenho de sobra com o teu nome? Em que lodo te perdes que não te deixa ver o que vales, ou que reflexos te chegam de quem não vê além da capa? Quem te matou, meu bem? Quem te deixa solto e perdido nas nuvens escuras de amargura? És tão mais do que crês, tão maior do que a sombra de que foges. Visses metade do que vejo em ti... 

Discordamos tantas vezes, campeões dos mal-entendidos, dos arrufos e verbos mal medidos. Contra todas as probabilidades, arcando com todas as impossibilidades. Tantos esforços pela imunidade, pela indiferença, pela distância, e ambos sabemos que é inevitável que os enredos se misturem numa qualquer manhã de jasmim. 

Desistimos das fugas e assumimos a complicação. Largamos mensagens encriptadas pelo chão e pelo ar. Ficam beijos pendurados nas palavras, e sílabas evitadas por entre guinadas. Prometo inundar-te de verdades, doam ou elevem as vontades. Não tenhamos medo, que o desastre está assegurado. Destroços seremos, carbonizados, estilhaçados nas músicas que entoamos sincronizados, distantes e unidos por âncoras incompreensíveis.

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Uma das insuspeitas dificuldades na vida de um introvertido é ter de lidar com pessoas extremamente extrovertidas, comunicativas, que metem conversa por tudo e por nada. A cada uma destas interacções, o introvertido vai ficando cada vez mais cansado, sem energia, esgotado.
Sabem aquele pessoal que trabalha no atendimento ao público e consegue estar sempre a sorrir e gerar empatia em três tempos? São o máximo, não é? Não. Para mim não. Aliás, prefiro mil vezes, por exemplo, ir àquelas lojas enormes em que se precisares de ajuda em alguma coisa tens de andar à procura de um funcionário do que ir a sítios onde, assim que entras, alguém se dirige a ti e pergunta se pode ajudar. Não, não quero ajuda, quero estar aqui a olhar e a dialogar comigo mesma sem ser perturbada nem observada!
Eu sou a pessoa mais introvertida do Universo e confesso a grande dificuldade que tenho diariamente.
Tenho uma chefe que podia ser apenas o cúmulo da extroversão, mas é muito mais do que o que posso narrar aqui e ainda acresce que tem uma fobia ao silêncio. Não consegue ficar calada, em circunstância alguma, o silêncio é-lhe verdadeiramente desconfortável, interpreta como outra coisa qualquer (desânimo, fatiga, mau feitio, sei lá) e, portanto, o normal é, se mais ninguém fala, tratar de preencher esse "vazio" (que para mim é essencial é sabe tão bem).
Quando tenho de passar um dia inteiro só com a chefe, é certo é sabido, chego ao final do dia com a cabeça feita em água. É óbvio que sei que não é por mal, não é defeito, é feitio, mas a sério que ultrapassa todos os limites possíveis. Chega mesmo ao cúmulo de, não tendo mais assunto para falar, ir revelando estórias pessoais e íntimas, nomeadamente que dizem respeito apenas a outras pessoas! Claro que, assim, a vontade de dizer o que quer que seja é cada vez menor...
Preciso de privacidade, sossego, recato e em calhando até isolamento. Não tem mal nenhum, fico em óptima companhia.

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Afinal a ultra resistência ao álcool pode ser colocada em causa com uma forte dose de sono e pouca cachupa no bucho (e talvez uma virose esquisita).

Afinal quando se sai à rua sem o cabelo acabado de lavar não acontece nenhuma desgraça, nem as pessoas ficam a olhar em espanto horrorizado para a absurda quantidade de oleosidade natural.

Afinal a concretização de relações não monógamas não traz forçosamente mágoas, ciúmes, desconfianças, sentimentos de culpa, não abala as estruturas do que se tem em casa, quando o que se tem é sólido, transparente e verdadeiro.

 

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O meu elemento é o ar (o nome do alter-ego não é acaso). É onde me sinto mais em casa, com alguma distanciação do terreno e material. É lá por entre as nuvens que me encontram a divagar, muitas vezes a construir castelos ou a conversar com os pássaros. Sem pesos nem amarras, num mundo alternativo.

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Não tinha falsas modéstias, sabia que tinha uma cabeça interessante, um discurso cativante, rebelde e uma dose de poesia na alma que, nas raras ocasiões em que a revelava, não colhia indiferença.

Bicho-do-mato, arisca, bruta, conseguia afastar qualquer um antes de dar a hipótese de ser rejeitada. Não concebia que pudesse ser mais a outros olhos do que era aos seus próprios e sacudia com força quem ousasse aproximar-se. Quem não toca não magoa e esse parecia ser o segredo para não morrer de amor.
Não se reconhecia na imagem que devolvia o espelho, que evitava olhar de frente. As formas flácidas, as curvas esmorecidas, papos, borbulhas e cicatrizes atacavam de frente a miúda atrevida que queria ser, chamando a atenção de que afinal o tempo de ser miúda já passou e o atrevimento podia ser ridículo. Voltava costas e tentava esquecer-se do reflexo que lhe tolhia as ousadias.
Todos os dias odiava as suas contradições, enquanto ia aprendendo a amar-se. Queria mudar o mundo, mas não cabia nos moldes mundanos. Todos os dias corria atrás de um ideal que não sabia definir. Queria ser especial mas para ser invisível era preciso ser banal. Apontava as fugas de toda a gente, incapaz de se deter e se despir. Gabava-se de não temer nada mas soluçava o choro seco de quem lamenta existir. Queria ser leve, simples, fácil, mas era um vendaval surreal.

Sofia apagou-se um dia, com o coração em remendos e a alma em cacos.