Ainda ontem falávamos disto. E anteontem também. Eu insisto, bato na mesma tecla, para me lembrar e para esfregar pelos olhos adentro dos outros, que teimam em não lembrar. De vez em quando, deixo olhos tristes e molhados. E deixarei, sem comiseração por misérias pequenas, que são as da alma. Quando me dizem que sou tão positiva ou tão forte, é porque não me esqueci, naquele momento, de relativizar. Não sou mais forte, sou da mesmíssima profana matéria que todos nós, banal e esmagada com a pequenez da humanidade. Alimento um mundo inteiro, não parcial, dentro de mim, esforço-me por não esquecer, por ver a big picture, e se diferença houver é apenas esta. Se tenho problemas, dores? Como toda a gente, carradas deles e montanhas delas. Se me lamento? Sim, demasiado para o meu gosto, apesar de quase ninguém me ouvir, de "gritar para dentro" como me diz a minha mãe. Se os problemas são capazes de me abater? Só se eu deixar. E não posso deixar de acreditar, "em mim e no infinito".
E porque o Zé Luís o diz tão brilhantemente, como eu nunca poderia, e porque se aprende mais com os homens que puxam riquexós nas ruas de Deli do que em dúzias de anos dentro de salas de aulas lisboetas. E porque olho em volta e vejo pessoas de quem gosto tanto, tanto, que merecem tanto, tanto, motivos para sorrir. Acreditar é preciso.
Saber é lembrar-se.
Aristóteles, Poética
Zé Luís, nunca te esqueças dos homens que puxam riquexós nas ruas de Deli. Nas subidas, levantam-se do banco das bicicletas para usarem o peso inteiro do corpo em cada pedalada. No banco do riquexó, podem ir sentadas três pessoas, quatro, uma família com filhos ao colo, pode estar empilhada uma altura de sacos, madeira, pedras, barras de ferro. Os homens que puxam riquexós nas ruas de Deli têm vinte, trinta ou sessenta anos, parecem ter setenta, e vestem todos os dias a mesma camisa rasgada, os pés desfazem-se nos chinelos, as mãos agarram o guiador da bicicleta porque esse é o seu ponto de apoio no mundo, é ele que os impede de se afogarem no pó: terra castanha que se cola ao suor. Os homens que puxam riquexós nas ruas de Deli são capazes de sorrir debaixo dessa terra que os cobre, os seus olhos existem; são capazes de dizer algumas palavras em inglês, thank you, sir.
Quando o trânsito não tem solução, quando a estrada é um muro de camiões feitos de lata e parados, motas a passarem pelas folgas estreitas de autocarros negros como galeras, carros antigos, vacas desentendidas, cães exaustos, e pessoas em todas as direcções, esses homens de ossos desenhados na pele do rosto são capazes de levantar os riquexós no ar, de passá-los sobre os separadores centrais e de continuar a puxá-los, todo o seu peso, no outro lado da estrada, em contramão. Não te esqueças deles, Zé Luís. Não te esqueças da sua vontade muito maior do que a miséria, muito maior do que todas as facas, todo o veneno. Esses homens foram aqueles meninos que, hoje, agora, caminham sozinhos nessas mesmas ruas de Deli e estendem a mão a pedir uma rupia ou brincam, esquecidos das buzinas que se embaraçam à sua volta. As suas mães, vestidas com saris, continuam a cavar buracos na berma da estrada, a carregar alguidares com terra e pedras à cabeça. Os seus pais continuam a atravessar a cidade a pé apenas para chegarem ao outro lado e regressarem sem nada. O calor queima-os a todos por igual.
Por isso e por mais do que isso, não te esqueças dos homens que puxam riquexós nas ruas de Deli, Zé Luís. Depois de quilómetros a puxarem um casal de namorados, o rapaz irá pagar-lhes 10 rupias (60 rupias = 1 euro, mais ou menos) e se o homem, ainda sentado no banco da bicicleta, achar que merece 20, se abrir a boca para dizer duas palavras abafadas em hindi, o rapaz há-de dar-lhe dois murros onde o apanhar, no peito ou na cara. E o homem que puxa o riquexó há-de encolher-se porque estará já rodeado por muitos outros rapazes, de castas mais altas, que o olham com o mesmo desprezo do casal de namorados. Como te atreves?
Durante o dia, os homens que puxam riquexós nas ruas de Deli poderão trocar uma nota suja por pão (naan) e água. Enquanto o estiverem a mastigar, terão os olhos abertos e sentir-se-ão privilegiados. À sua volta, monges com os braços cortados pelos pulsos, cegos agarrados às paredes, raparigas despenteadas a vasculharem montes de lixo. Ao serão, os homens dobrar-se-ão sobre o banco do riquexó e, após instantes, poderão adormecer por fim. Se alguém chegar e lhes empurrar os ombros, serão capazes de reconstruir a organização dos ossos, passar a palma da mão aberta pelo rosto, lixa, e pedalar até onde for preciso, 10 rupias. O que se espera da vida? Há um corpo, a pele, e há o sofrimento que se é capaz de conceber, o conforto que se desconhece. Zé Luís, os homens que puxam riquexós nas ruas de Deli estão neste momento a sonhar com aquilo que rejeitas e agradecer aquilo que deixaste de sentir. Não são eles que correm o risco de se esquecer da vida, és tu. O teu padrinho tinha uma bicicleta igual àquela com que eles puxam o riquexó. Lembras-te ainda de como soava a sua campainha à entrada da rua de São João? Lembras-te ainda da sua voz quando falava para ti?
Quanto estiveres a ponto de te preocupar com merdas, os dilemas da poesia portuguesa contemporânea, o IRS, o código do multibanco, os carros que te roubam o estacionamento, a falta de rede no telemóvel, as reuniões de condomínios, o tampo da sanita, lembra-te dos homens que puxam riquexós nas ruas de Deli. É essa a tua obrigação.
Nunca te esqueças do mundo, Zé Luís.
Podes estar descansado, Zé Luís. Eu não me esqueço.
José Luís Peixoto, in revista Visão (Abril, 2010)