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Ventania

Na margem certa da vida, a esquerda.

Ventania

Na margem certa da vida, a esquerda.

origem

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"Isso acabou." "Não haverá próxima vez."

Ela não lhe via os olhos mas sabia que ele provavelmente acreditaria nas suas próprias palavras e sabia de cor que os olhos dele vagueavam cabisbaixos, à procura da certeza que ela tinha na voz, ou de uma confirmação divina de que bastavam as suas melhores intenções para lhe evitarem os desvios.

Ele não sabia que mentia porque não é preciso mentir quando todo o caminho ainda por percorrer existe num plano passado a limpo em cadernos quadriculados, e está fotografado de antemão em película por revelar. Ela tinha o condão de ler as pessoas e de saber, com uma certeza inexplicável que nunca se enganara, tudo o que precisava de saber, qual mística Blimunda. Ainda assim, insistia em dar o benefício da dúvida, uma e outra e mais outra vez. Recolhia os cacos do seu ego estilhaçado e lambia as próprias feridas, quase pedindo desculpa por incomodar com as marcas de sangue nos degraus.

Que teimosia era aquela que a fazia avançar sem hesitações quando sabia, por ter visto por dentro, que cada novo tropeção lhe esfolaria novamente os joelhos já em osso?

Que perdão concedido à partida era aquele que, por amor ou condescendência, garantia a quem (sem querer?) a agredia, repetidamente?

"Vive as coisas com naturalidade" - aconselhava ele antes de mudar de assunto, com ingenuidade forçada, como que a dar uma odiosa palmadinha nas costas, e talvez seguro de que uma próxima agressão não seria ainda a última, não seria ainda o limite, não seria ainda suficiente para ela sair sem bater com a porta, de mansinho, a meio de um Domingo distraído e solarengo em que nenhuma promessa se havia cumprido.

Enquanto descia as escadas devagarinho, a esconder os olhos do Sol que a abraçava e com toda a bagagem enrolada debaixo do braço, ela pensava nele e em quão desorientado ele se encontraria nos meses todos que ia demorar a notar que ela não regressaria, tinha saído para sempre, sem dar explicações, empurrada com toda a violência por uma leve palmadinha nas costas.

 

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